sábado, 20 de fevereiro de 2010


Travessia do Aqueronte

Caríssimos leitores, boa tarde. Não se esqueçam de atrasar, hoje, seus relógios em uma hora. Finalmente termina esse tormento, que é o Horário de Verão. Os que têm que madrugar para ir para o trabalho que o digam. Mas, meu assunto de hoje não é este.
Os desarranjos mentais, psicológicos e/ou afetivos são temas recorrentes em Literatura, não importa em que gênero ou se em ficção ou não-ficção. A rigor, sequer nos enganaríamos muito se disséssemos que se trata, se não do único, pelo menos do principal assunto de que nós, escritores, nos valemos, mundo afora e através do tempo. De fato, é.
Quando analisamos poesias, contos, romances, novelas, peças de teatro e roteiros de cinema, concluímos, facilmente, que conflitos e desarranjos mentais, psicológicos e/ou afetivos são, de uma forma ou de outra, os únicos temas subjacentes nas tramas criadas, em todas as histórias narradas. E isso sequer surpreende o estudioso de Literatura.
Afinal, nós, escritores, somos pessoas que escrevem sobre outras pessoas (no caso, nossos personagens) para outras pessoas (os leitores) lerem. Nenhum assunto interessa e toca mais fundo o homem do que o próprio homem, em suas grandezas e vulnerabilidades, força e fraqueza, racionalidade e loucura.
Todos nós, algum dia, por uma razão ou por outra – por herança genética, por acidente no parto, por desajustes hormonais (e sobre isso a doutora Mara Narciso pode falar com muito mais propriedade do que eu), em decorrência de traumas, como conseqüência da miséria e da fome etc.etc.etc. – já tivemos, temos ou teremos uma (ou todas) dessas patologias físicas, emocionais ou comportamentais.
O escritor aborda estes temas tão dramáticos, que implicam em tanto sofrimento, não por sadismo, para provocar dor e aflição nos leitores. Trata-os porque “existem” e afetam, em variados graus, de alguma forma, a totalidade dos 6,7 bilhões de habitantes da Terra.
Para uns, escrever a respeito é como se fosse uma terapia, é uma espécie de catarse. Para outros, é uma tentativa de ajudar os que padecem desses males. Para outros, ainda, é um caminho para produzirem literatura de primeiríssima qualidade, com histórias pungentes, reveladoras e, sobretudo, verossímeis. E ponham verossimilhança nisso!
Dos livros mais recentes, abordando direta e especificamente desarranjos mentais, psicológicos e/ou afetivos, recomendo um em especial, escrito pela escritora e jornalista (é editora-chefe do “Jornal da Tarde”, de São Paulo), Claudia Belfort.
Trata-se de “Aqueronte – o rio dos infortúnios”, que reúne 13 contos inspirados em alguma forma de loucura. Há quem ache que já a própria quantidade de histórias reunidas seja uma espécie de mensagem cifrada da autora. É até possível, posto que improvável.
Há quem tenha o número 13 como símbolo máximo de azar, de coisa ruim, de desgraça. Paras outros, porém – e citaria o vitoriosíssimo campeão mundial por quatro vezes, duas como jogador, uma como auxiliar e outra como técnico de futebol, Mário Jorge Lobo Zagalo – é uma espécie de talismã que atrai toda a sorte do mundo. Para mim, não é nem uma coisa e nem outra. É apenas um número, como outro qualquer.
Claudia foi felicíssima já a partir do título do livro. Na mitologia grega, Aqueronte simbolizava a morte. Era um rio que as almas atravessavam, conduzidas pelo soturno barqueiro de Caronte, rumo ao inferno ou ao Paraíso.
Os gregos tinham por costume colocar duas moedas de cobre, uma em cada pálpebra, dos mortos, antes do seu sepultamento. Faziam isso, não para manter os olhos do defunto fechados, como ouvi muitos dizerem, mas para provê-lo de recursos para o pagamento dos serviços prestados pelo barqueiro de Caronte.
E qual a relação entre a loucura e a morte? É total e absoluta! Quem é internado em algum manicômio, ainda nos dias atuais, em pleno século XXI da Era Cristã, mesmo que seja diagnosticado como completamente curado ao receber alta, “morre” para a sociedade. Ninguém confia nele para nada e, por mais que diga e escreva coisas inteligentíssimas, sábias ou geniais, de extrema lucidez, elas serão invariavelmente interpretadas pelo mundo inteiro como “palavras de louco”.
Os soviéticos sabiam disso como ninguém. Tanto que, toda a vez que queriam “sossegar” algum dissidente, mas sem executá-lo no paredão, internavam-no em algum manicômio. Era tiro e queda. O sujeito perdia credibilidade (isso até que alguém descobrisse a artimanha e a denunciasse ao mundo).
Quanto às 13 histórias de Claudia Belfort, não comentarei nenhuma. Seria loucura da minha parte, digna de um exemplar “sossega leão”, roubar-lhes o prazer de se deliciarem com a leitura desse tão bem escrito livro.

Boa leitura.

O Editor.


2 comentários:

  1. Muito interessante o tema de seu editorial, Pedro. Os sentimentos humanos, as maravilhas e os conflitos da psique sempre me atrairam. Ótima dica de leitura! Abraço!

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  2. Está difícil mudar esse conceito de loucura atrelada a morte. No período da crise, sim, mas quando a tempestade passa, hoje, muito mais do que ontem, e com a ajuda da psiquiatria, a mente volta ao racional.

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