sábado, 27 de fevereiro de 2010











O aprendizado de Nélida

* Por Luiz Carlos Monteiro

A construção de um testemunho intelectual com entradas no foro existencial sempre seduziu poetas e ficcionistas. As referências e exemplos são numerosos no tempo histórico-literário, começando com as civilizações greco-romanas, passando pelo medievo, até chegar à contemporaneidade. Esse testemunho pode manifestar-se em diários, cartas, poemas, memórias, discursos, diálogos, textos de autocrítica e ensaios autobiográficos. No caso brasileiro, de Machado de Assis a Carlos Drummond de Andrade, aparece de modo direto ou implícito na prosa de ficção memorialística ou autobiográfica ou na poesia que não esconde o eu subjetivo porém descarnado e centrado no referencial histórico do autor.

Com a publicação de Aprendiz de Homero, Nélida Piñon disponibiliza ao público o seu próprio testemunho intelectual que envolve ensaios sobre carreira, preferências literárias, concepções de assuntos polêmicos como magistério, religião, família ou a condição da mulher. Obviamente que em sua obra, configurada por uma competência que referenda a extensão, ela vem se descobrindo e descobrindo as faces ignoradas de seus leitores e personagens, além de mapear um país que assumiu como seu, quando se pensa nas suas origens galegas. A estreante de 1961 com Guia mapa de Gabriel Arcanjo, que teve recepção favorável da parte do crítico Fausto Cunha, não mais parou de escrever e vem se afirmando como autora de romances antológicos e reconhecidos de público, a exemplo de A casa da paixão, A força do destino e A República dos sonhos. Estes trabalhos abordam respectivamente, entre outras coisas, um erotismo sem concessões mas não pornográfico, a paródia bem humorada de uma ópera de Verdi e a imigração espanhola para o Brasil, mais especificamente de um grupo de pessoas que veio da Galícia. O reconhecimento internacional alcançado por Nélida Piñon comporta uma extensa listagem de prêmios, homenagens, traduções ampliadas de seus livros, passagens por universidades, além de títulos de doutorado honoris causa.

A mulher ocupa um lugar destacado nos ensaios de Aprendiz de Homero. Começa com Sara a conspirar contra Abraão e a rir de Deus por querer o divino romper a sua esterilidade depois de velha. A memória de Sara é a memória da submissão de todas as mulheres ao patriarcalismo de Abraão e à unilateralidade religiosa de Jeová, embora ela esconda segredos que ouviu dos diálogos entre ambos, a que nem o próprio Abraão conseguiu ter acesso. Em “Dulcinea – a agonia do feminino”, retorna até o texto cervantino, a inquirir sobre o visionarismo de Maritornes, mulher mundana e empregada da estalagem onde o Quixote e Sancho se hospedaram, e que não aceita o fato de o Cavaleiro ter idealizado uma dama tão impossível de existência quanto Dulcinea.
Todo um tratado sobre a ilusão é feito em “O espetáculo da ilusão”, que talvez seja um dos textos de mais difícil realização, pois analisa por dentro o livro A doce canção de Caetana, da própria Nélida. Uma leitura dentro da leitura, onde ela fornece as motivações para a escrita do romance, informa sobre a evolução da personagem Caetana, que tem como objetivo transformar-se em Maria Callas, numa apresentação teatralizada no lugarejo Trindade. A romancista não esquece de aludir à performance e ao sacrifício de artistas que impulsionam o teatro mambembe: “Caetana, contudo, na condição de atriz pobre, integra-se às expectativas geradas pelo espetáculo teatral que se anuncia no cine Íris. Sua natureza exigente requer da grei de artistas ativa participação. E, graças à ilusão que vai semeando em torno, sentem-se todos condenados à aliança imposta pela arte”.

As grandes amizades refletem-se nos textos sobre Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, estendendo-se a suas mulheres. Mas, o vetor analítico de Nélida não deixa ofuscar a sua crítica da obra de ambos, sobre a narrativa que engendraram. De Vargas Llosa em “O escriba Mario” ela faz o percurso crítico aprofundado do seu livro El hablador, onde Mario é personagem e autor ao mesmo tempo, narrador onisciente e sujeito participante junto aos índios machiguengues do Peru. Segundo ela, Vargas Llosa “infiltra o texto com artimanhas e artifícios. Impõe-nos, como consequência, o convívio com um autor que, de seu mirante de observador, fortalece-se por meio da perícia com que situa o imbróglio narrativo sobre o tablado livresco”.

Em Aprendiz de Homero, Nélida Piñon perfaz um roteiro crítico-interpretativo que alia uma marca subjetiva visível em toda a sua prosa, ao expressionismo de afirmações seguras e pensadas racionalmente sobre a obra de numerosos autores, canônicos ou não. Por isso seu estilo pode, em certos instantes, oscilar e bipartir-se explicitamente entre o real e o onírico, entre a cidade e o campo, entre o antigo e a modernidade. E é neste ponto que ela faz a defesa da inserção do clássico no contemporâneo, e vice-versa. Disserta sobre o deslocamento das massas rurais para os alojamentos urbanos precários e compartimentados, descarnando certa aculturação proveniente do êxodo rural para as grandes capitais, da substituição da natureza e da vida simples pela luta desigual pela sobrevivência, que só permite de passagem e fugazmente a consecução do tempo e do lugar para o sonho.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com




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