sábado, 27 de fevereiro de 2010


O artista e seu tempo

Caríssimos leitores, boa tarde. Hoje, trago à sua apreciação textos mais reflexivos, posto que um tanto extensos. Chamo atenção especial para o instigante ensaio de Richard Rorty. Sei que muitos dos freqüentadores não gostam desse tipo de literatura e preferem postagens mais leves, mais curtas e que não exijam tanta (ou nenhuma) meditação. Estes serão contemplados em outros dias. Nosso espaço, além de democrático, prima pela variedade e, principalmente, pelo conteúdo. È o nosso diferencial em relação a outros tantos similares.
O tempo em que vive, com suas peculiares circunstâncias, determina a forma de expressão do artista, notadamente do escritor? Vivesse em outra época, que não esta, faria o tipo de arte que faz ou seguiria outros rumos? O quanto o ambiente em que transita influencia no que é e faz? Caso tivesse nascido no século XV ou, avançando no tempo, no XXIII, seria, pelo menos, artista?
Essas indagações foram suscitadas por um trecho do livro “A imortalidade”, de Milan Kundera, um dos melhores que já li nos últimos anos. Tanto que ele é uma de uma meia dúzia de obras-primas que considero fundamentais, tanto que separei da minha vasta e caótica biblioteca e mantenho ao lado do computador, para freqüentes e sucessivas consultas.
O escritor checo lança a seguinte questão: “Quando um homem é dotado para uma atividade para a qual o relógio soou a meia-noite (ou ainda não soou a primeira hora), o que aconteceu com seu talento? Vai se transformar? Vai se adaptar? Cristóvão Colombo se transformaria em diretor de uma sociedade transportadora? Shakespeare escreveria roteiros para Hollywood? Picasso produziria histórias em quadrinhos? Ou então todos esses grandes talentos se retirariam do mundo, partiriam, por assim dizer, para algum convento da História, cheios de decepção cósmica por terem nascido em má hora, fora da época para a qual estariam destinados, fora do mostrador que marcava a época deles? Abandonariam seu talento intempestivo como Rimbaud, que com dezenove anos abandonou a poesia?”.
E você, caro leitor, qual sua opinião a respeito? Claro que, em qualquer atividade, o “se”, o condicional, o que não aconteceu, mesmo podendo ter acontecido, não conta. Trata-se, apenas, de provocação para reflexão, sem nenhum sentido prático. Da minha parte, entendo que se os gênios citados por Kundera nascessem em épocas diferentes das que nasceram, não seriam, jamais, o que foram. Poderiam, claro, ser até melhores. Penso, contudo, que seriam piores.
A propósito de Arthur Rimbaud, sempre me intrigou o fato dele ter aberto mão do seu absurdamente imenso talento tão cedo, privando o mundo de sua poesia mágica e original. Se, parando de compor aos 19 anos, compôs tantos e fantásticos poemas, o que não poderia ter composto se o fizesse, digamos (para não exagerar) até os 40? Mas... Aqui entra, novamente, a questão do “se”. E o condicional não conta, nem na arte e nem na vida. Afinal, não aconteceu.
O próprio Kundera cita esta maravilha de versos de Rimbaud: “Nas noites azuis de verão/irei pelos caminhos/no meio do trigo,/pisando a relva tenra...//Não falarei nada,/não pensarei em nada.../e irei longe, muito longe,/como um cigano/no meio da natureza/feliz como se estivesse/com uma mulher”. Lindo! Lindíssimo! Mágico! E se Rimbaud vivesse nos nossos dias, escreveria esses versos? Faria coisa melhor? Sua obra seria pior? Seria, pelo menos, um poeta? Nunca iremos saber!
Acho curioso o gosto dos leitores (em muitos casos, mau-gosto). “A Imortalidade” não é, dos livros de Milan Kundera, o mais vendido, o mais comentado e o que foi melhor recebido pela crítica. É verdade que sua obra literária (felizmente) é vasta e variada. Outra coisa que não entendo é a razão dele jamais ter sido sequer indicado, e, portanto, nunca foi premiado, com o Nobel de Literatura. O cara é muito bom no que faz. Leiam-no com a devida atenção e, certamente, concordarão comigo.
O livro de Kundera mais conhecido (e badalado) é “A insustentável leveza do ser”, publicado em 1983. Trata-se, sem dúvida, de excelente romance. Não discuto, e nem poderia, sua qualidade. Longe disso. Mas se tivesse que fazer uma comparação, não passaria nem perto de “A Imortalidade”, publicado em 1990. Esse é seu romance mais cosmopolita, em que ele abandona a temática que vinha seguindo até então, de cunho político e social, e passa a dar conteúdo profundamente filosófico ao que escreve. Daí eu tê-lo até como material de consulta e não como mero romance para minha distração.
E Kundera, caso houvesse nascido, digamos, no século XIV, ou então no XXIV, seria o escritor que é? Escreveria livros melhores, piores ou iguais “A Imortalidade”? Teria o estilo gostoso que tem, fluente, coloquial, mas não raro irônico, crítico e provocativo? Seria, pelo menos, escritor? Da minha parte, entendo que não? E você, leitor, o que pensa a respeito?

Boa leitura.

O Editor.

Um comentário:

  1. As combinações genéticas seriam outras e não haveria essa pessoa. E caso houvesse, a produção seria para outro rumo, com outro enredo, considerando-se que a moda seria outra e a existência também. Sobre isso, não precisamos ir muito longe. Caso uma pessoa fosse clonada, o seu igual não seria igual coisa nenhuma, já que viveria uma outra vida, com outras experiências. Assim, até fisicamente poderia ser muito diferente, bem mais do que a diferença de gêmeos univitelinos.
    Destaco: " condicional não conta, nem na arte e nem na vida. Afinal, não aconteceu." Boa!

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