quarta-feira, 5 de agosto de 2009




Da margem

* Por Cacá Mendes

Olhei outro dia, quase sem querer, na Nove de Julho, uma pá de caras de rua juntos, todos muito unidos em avançado estado de farto calor humano, num arredor, tão somente, comungando-se no entorno de uma fogueira. Isso porque o frio e chuva nesta capital do santo Paulo, que de santo só o “são” lhe parece, anda de amargar o cu das calças dos todos e dos outros que nem são todos. Nossa, um julho frioso que já vai tarde da vida fora ou dentro de mim. Vai, vai. Olha, olhado fica. E do que estava a dizer, dos caras que vivem nas ruas, ensimesmados nos seus consigos difíceis pra comer, uma janta que seja, esfregavam, esfregavam suas mãos em um forte esfregar, de tirar sangue, quase, delas, pra se esquentarem de si.

Fiquei no meu imaginar cabível de possibilidade, tentando entender o passar com essa gente, que vive nos aquis e nos acolás dos tempos abertos, sob chuva e sol. Uns deles, sabido isso de muitos dos que estão aqui do meu lado, deste daqui, mesmo vivendo sem um lugar fixo de seu, trabalham, se sustentam, andam limpos de roupa e pele; outros desses alguns vão no gradativo – como em luz que vai se pondo em fim de tarde – deixando a vida dos pensamentos, das razões. Estes, excêntricos, se apartam daqueles outros que ainda tentam um laço, uma agulha de linha com a civilidade...

Daí, os esquisitos saem aos poucos do foco da vida. Não se sabe se continuam vendo, olhando. Penso que sim, que devem se afastar dos tais civilizados, dos tais pensantes, dos tais com razões, talvez para melhor os observarem por completo em suas almadas vidas de gente que vive em sociedade, unida. Assim, ficam horas e horas nos seus perâmbulos, grunhindo nos seus sós de bichos que vão voltando a ser, num recuo absoluto, sobrando-lhes apenas novas cavernas e um ou outro fogo para um cigarro. Este, quiçá, seja a única coisa de civilidade nesses seres... De resto, nada mais, nada mais parece existir-lhes. Ah, comer?! Sim, reviram o lixo e banqueteiam todas as noites banquetes impensáveis nos inícios dos tempos dos humanos. E não há comida melhor para essa fome de apartado que é.

A mim é como se essa massa de carne e osso, em movimentação ensimesmada, vivesse apenas para conferir até os ondes dos seres dos “normais” vão. Assim, passam o dia nos observando e conferindo-nos para algum carrasco imaginário que lhes ordenam tais conferências: dos talvez, devem esses afazeres para entender as ações dos nós de carne e osso. Devem rir, debocharem de nós outros, descaradamente, da nossa ganância, da nossa pressa, da nossa preocupação com os exatos horários das nossas tarefas rotineiras...

Eu já vi esses seres, coisando em coisa de coisa pra coisa de uma coisa para outra coisa, sem fôlego, sem refreio, nem nada, sem parada, só pra irritar uma senhora de bolsa rosa que lhes oferecera uma balinha de mel. Eu vi, nesses dois meus tições de enxergar, esse sujo sujeito zanzando no seu ocaso pra irritar a turba que passava num dos seus lados. Sim, digo, e o isso foi na Rua Sete de Abril, bem próximo do antigo Mappin. E, mais: depois o enfurecido sujeito de mãos de colher, assim, em concha, correu zanzando pros lados do Teatro Municipal, e lá fez questão de olhar cada olho da fila imensa que se formara para uma grande apresentação de uma companhia de ballet de Paris.

O povo, digo, aquela gente, ficou realmente muito assustada com esse sujeito enfurecido, indiscreto, barbudo, sujo, imundo, olhando-os assim, como um perguntador de coisa com coisa dentro de outras tantas. A repetição é seu grande trunfo... Ah, esse sujo sujeito! Rá, rá, rá, engoliu o seu seco, lubrificou as ventanas enervadas da sua cratera de gritar e urrou de pinto pra fora... Ah, ah, finalmente urinou todo, todo, bem ali diante “daqueles” pessoal do todos. Os repugnados, em narizes apontados em direção lunar se escondendo do imundo, oh, oh, seu imundo... Bom, só pensaram, nada sabiam mesmo do sujeito, mas ele sabia de todos ali, sabia, sabia, sabia de cada um.

(E não pensemos nós, os letrados e pensantes seres de razões e tudo, que a esse tipo exista algo de Deus nos deles de viver. Nada, nada. Só sabem do si pra si, observar e se enervar nos consigos. Mais, nada, nada. Deus e o cacete, o diabo e o cara do carrinho de cachorro quente, o guarda noturno, a mocinha gostosa e cheirosa, chique, um carrão e um pacote de dinheiro desses bem enricados, são os do tudo a mesma coisa: nada, nada!).
Viver no fora do esquema, de beirada, daria pra ver o meio? É o isso então dele que quer assim? Seria esse o seu único pensar, que é o ver direito, observar cada gosma de horror, incrustada em cada cara cidadã?! Será?!

Ora, ora, me belisquei na bunda e me andei num andar lerdo, parvo e descomedido da cabeça... buzinas e barulhos de pneus molhados no asfalto frio me acordaram dos disso aí de cima. Então revi a roda de gente de rua, olhando e reolhando o fogo e se esfregando nele com as costas delas, as mãos. Intumescidas d’um vermelho de fogaréu cozido do exposto ao relento do até sangrar.

Bem ali, diante dos meus olhos numa Nove de Julho, os sins e nãos desses que são os sós dos nossos observadores. Da margem.

* Jornalista – blog: www.cronicaseg.blogspot.com


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