No vagar do passeio
* Por Daniel Santos
Na festa dos 80 anos, o velho abria presentes quase apático. Primeiro, porque àquela altura faltava-lhe um grande projeto de vida. E, sem expressar desejos, ganhava o previsível: lenços, meias, cuecas ...
Naquela noite, no entanto, o neto estendeu-lhe uma caixa e, ao abri-la, os olhos do aniversariante recobraram o antigo brilho. Teve, então, certeza de que a vida não mais escoaria como água por entre seus dedos.
Meticulosa, imersa em pregas, serena como quem pactua com a eternidade, uma tartaruga espichou o pescoço e logo refluiu ao próprio casco. Viveria, na certa, bem mais que ele, mas acolheu-a afetuoso.
Ao cuidar dela, esqueceu dores e remédios, ganhou peso e comprava jornais todo dia para se inteirar das últimas, agradecido à sábia intuição de uma criança que lhe colocara em mãos a chave do mistério.
Sim, quem ampara o semelhante a si mesmo se apruma: na tolerância do tempo, o alargamento dos prazos; no vagar do passeio, o caminho mais longo. E assim têm aprendido – o velho e a tartaruga.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
* Por Daniel Santos
Na festa dos 80 anos, o velho abria presentes quase apático. Primeiro, porque àquela altura faltava-lhe um grande projeto de vida. E, sem expressar desejos, ganhava o previsível: lenços, meias, cuecas ...
Naquela noite, no entanto, o neto estendeu-lhe uma caixa e, ao abri-la, os olhos do aniversariante recobraram o antigo brilho. Teve, então, certeza de que a vida não mais escoaria como água por entre seus dedos.
Meticulosa, imersa em pregas, serena como quem pactua com a eternidade, uma tartaruga espichou o pescoço e logo refluiu ao próprio casco. Viveria, na certa, bem mais que ele, mas acolheu-a afetuoso.
Ao cuidar dela, esqueceu dores e remédios, ganhou peso e comprava jornais todo dia para se inteirar das últimas, agradecido à sábia intuição de uma criança que lhe colocara em mãos a chave do mistério.
Sim, quem ampara o semelhante a si mesmo se apruma: na tolerância do tempo, o alargamento dos prazos; no vagar do passeio, o caminho mais longo. E assim têm aprendido – o velho e a tartaruga.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
Daniel, é fantástico este seu texto de hoje. Gosto de tudo o que você escreve e tenho orgulho de contar com sua presença no Literário. Mas hoje, particularmente, você, com simplicidade e clareza, raiou a genialidade. Escreveu uma verdadeira parábola sobre uma fase tão rica e, no entanto tão incompreendida da nossa vida. As crianças, ewm sua santas inocência, são sagazes e compreendem muito mais sobre sentimentos do que a imensa maioria dos marmanjos. Mais uma vez, parabéns pela sua visão positiva de vida.
ResponderExcluirAs crianças são muito intuitivas.
ResponderExcluirUm bicho de estimação, qualquer que seja ele, é terapia.
Parabéns pelo conto cheio de doçura e ternura, Daniel!
O Daniel está sempre nos surpreendendo com suas sínteses que abrem portas emperradas ou nos dão chaves para aquelas teimosamente trancadas.
ResponderExcluirLi e gostei! Parabéns, Daniel!
ResponderExcluirTirar a esperança do outro deveria ser crime. É possível revigorar alguém com o trato de animais. Sábio o menino, inteligente o velho, e perfeição de crônica Daniel. O remédio está ali na frente. Só que nem sempre é visto.
ResponderExcluirObrigado, amigos, pela atenção. Pedro, foi a sabedoria do velho que elevou a crônica; Cel, a relação com animais nos enriquece, sim, espititualmente; Murta, não se engane, muitas vezes é o leitor quem encontra a chave; Rodrigo, que bom que leu e gostou; e Mara, remédio bom mesmo é o afeto, né?
ResponderExcluirQue linda lição, mestre. Quase uma fábula, que nos relembra aquele imenso paradoxo: todo mundo quer viver muito, mas ninguém quer ficar velho. Linhas sábias em pena genial. Parabéns, amigo.
ResponderExcluirGrato, mestre Marcelo. E nunca se esqueça de seguir as tartarugas, ok?
ResponderExcluirQuerido Daniel
ResponderExcluirNada como um presente que ninguém espera: uma tartaruga. Presente inusitado e que, além disso, vai estar ali por muito tempo, quem sabe até após a morte do avô.Que neto inteligente! Foi você?
Beijo
Risomar
Não, Ris, não sou eu. Trata-se de história inventada para mostrar que o afeto pode ainda mais que o tempo.
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