segunda-feira, 24 de agosto de 2009




Foi pelo sangue que ele jurou

* Por Eduardo Murta

O filete de sangue que veem se esmaltando à janela do velho Caraça é discreto, mas emblemático o bastante para mudar a vida do lugar. Fazer tremer o secular edifício de paredes ao feito de fortalezas. Sua silhueta instigante reinava ali no dorso da serra desde que os padres resolveram fincar aquele oásis de fé no meio do nada. Entre montanhas, bichos e um silêncio que desafiava a própria crença na vida.
Era por exato esse ambíguo contra-senso que levara Venâncio até ali. Menino ainda, ouvira as descrições precisas com Tio Calixto, caixeiro-viajante que desbravara uma Minas inteira. Foi convicto ao pai: Quero ir. Queria? Mas, afinal, em busca de quê? Ao certo, não sabia. Presumia apenas. Uma resposta, e não tinha em conta exatamente qual, esperava por ele ali.
Viajaria com tamanha convicção que, pela primeira vez, se despedia dos pais sem armar cenário de choro. Aos dois se abraçou num conforto longo. Pediu caneca de café já gasta, a vermelha, e a fatia de queijo canastra que adorava. Saboreou como não fosse voltar. Dez anos mal completados e era Venâncio ao portal do santuário. Roupas negras e uma compleição óssea que sugeria deserdados etíopes.
Aportou numa bruma tão espessa que Padre Olegário jurava, por um segundo, ter tocado a mão de um fantasma. E aquela sensação desconfortável o acompanhou dias afora. Até virem os primeiros sinais. Olho vivo no garoto, a confirmar se era real a versão de que hóstia crispava ao tocar-lhe a boca. E se o gesto santo lhe provia o rosto em marcas vermelhas e fundas na oração da noite. Tudo desgraçadamente verdadeiro.Foi então sobre ele, o estranho, que recaíram as primeiras suspeitas pelos episódios daquela sexta-feira: 11 galinhas em ponta-cabeça, amarradas, pescoços trucidados. Mais grave: rigorosamente desidratadas. Jurou que não. Pés juntos. E que o colega poderia comprovar que não se movera da cama. Comprovou. Mas a naturalidade com que chegara, o modo como se afeiçoara àquela atmosfera, estavam irremediavelmente abalados.
E se abalariam ainda mais naquela madrugada de julho em que esfriara a ponto de se sentir a alma feito um frágil cristal. Pela primeira vez lhe visitava o sentimento de que, num ponto qualquer, o controle se perdera. Lúcido, viu quando as unhas se alongaram cadavéricas e retorcidas. E o corpo parecia não lhe pertencer. Os caninos logo se puseram em protuberância vampiresca.
O filete de sangue que veem agora se esmaltando à janela do Caraça vem daí. Um Venâncio atônito diante do vizinho de alojamento já sem pulso. Em palidez mórbida. Ele vai projetar seu rosto à vidraça, incrédulo. O desfecho é história já escrita: as primeiras labaredas, o pânico instalado, a fuga mata adentro.
Em horas o santuário se converteria num esqueleto em brasas. O destino fez culparem um maldito ebulidor. Os registros de época apontam um só desaparecido: ele. Mas nas noites mansas de lua clara, em que, supremo espetáculo, os lobos-guará vêm comer à mão dos religiosos, Padre Olegário refina suas preces ao mais acanhado deles. O de compleição óssea que sugeria deserdados etíopes. O reverencia como saudasse a um velho e conhecido fantasma.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

4 comentários:

  1. Salve, Murta! O mistério, o fantástico, marcando pespontos numa história envolvente demais, num cenário medieval-tropical onde as sombras se movem por caminhos incompreensíveis, intrigantes, e por isso mesmo cheios de excitação. Só podia ser vc. Parabéns.

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  2. Conto de terror e mistério dos bons !
    Mistérios da meia-noite...
    É...os vampiros estão na moda.
    Os fantasmas andam entré nós.
    Ótimo !

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  3. O Caraça, se conhecem o lugar, é que é inspirador. Se não conhecem recomendo. Parte da história, como veem, é real. Já que é mesmo um santuário, internato, e houve um incêndio por lá em 1968. Mas cuidado com os vampiros quando forem por lá.
    Abraços

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  4. depois de contos e filmes "água com açucar", os de terror são os que mais me atraem...mistério, perigo arrepiam corpo e alma!
    adorei!

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