segunda-feira, 17 de agosto de 2009




Medo maior

* Por Daniel Santos

Da primeira vez que perdeu o controle, sentiu uma força assustadora injetar fúria no sangue e nos músculos – uma força que incitava à destruição. Mas, antes de se alterar por completo, a mulher escapuliu.

Sim, conseguiu se safar, mas com grande dificuldade, e a rigor ignora até hoje como se esquivou daquela ordem irracional que propunha a ruína, e não apenas de si mesma, mas igualmente dos seus!

Pois acabara de chegar do trabalho cheia de contas a pagar, o cachorro urinando na sala, o sapato mordendo-lhe o calcanhar e os filhos (ah, os dois pestinhas!) esgoelando-se até enlouquecê-la de verdade.

Também ela gritou e gritou que se calassem. Aí, o berreiro aumentou, enquanto a janta queimava no fogão, o cachorro rosnava feito um insano e os garotos puxavam-lhe a saia até enervá-la ao máximo.

A raiva evoluiu à fúria ... e ela desejou intensamente atirar as crianças pela janela. Morressem, ela teria paz, enfim. Mas trancou-se a tempo no banheiro para chorar. Chorar de medo de si mesma.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

8 comentários:

  1. Amigos do Literário!
    Por motivos particulares, estive “longe’ da internet nos últimos dias. Com isso, não pude agradecer a todos que leram e comentaram o meu texto da última sexta-feira. Muito Obrigado pelo carinho!

    Falando em comentar. Daniel: li e gostei. Quem nunca se sentiu assim ao menos uma vez?

    Aquele abraço – Rodrigo Ramazzini

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  2. O drama, Daniel, é quando não nos lembramos mais onde colocamos a chave...

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  3. Olha, Daniel, o clima que você tão bem descreve não é raro na vida de uma mulher que tem filhos pequenos. Confesso que já vivi algo parecido, quando um dia meu filho com um mês, começou a chorar sem parar e eu, sem experiência alguma, e com mil afazeres domésticos, e sem saber por onde começar, sentei em uma cadeira e chorei convulsivmente... Mas jamais tive vontade de atirá-lo pela janela...Adorei seu texto porque me vi nele.

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  4. Quem já não passou por um momento de fúria ?
    Nessas horas é bom respirar fundo, contar até três, ir para o banheiro, trancar a porta e chorar até não poder mais, como fez a personagem ou então, ir para o alto de uma montanha gritar até cansar....!!!
    Lembra do filme Um Dia de Fúria com o Michael Douglas ???????

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  5. Cena rotineira em muitos lares ao fim do dia. O lado histérico costuma preponderar sobre a fúria. Algumas vezes é a insanidade a ganhadora. O berro e/ou palavrão podem segurar o irracional. Outras vezes, como no caso, o desabamento em choro foi o caminho. Uma vez, para não acertar meu filho hiperativo, que, como os da história me enlouquecia, explodi um abajur contra o armário. Foi a saída que encontrei.

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  6. Obrigado, amigos, pelos comentários. Rodrigo: cada um tem a sua fera recôndita que, por mais domada, e se acuada, investe à revelia de todas as proibições; Murta: Sim, o perigo de trancar-se para sempre é abdicar a sensatez e não resolver nada, nunca mais!; Risomar: Mulheres são bem mais tolerantes que homens e talvez essa grandeza de espírito tenha te salvado; Celamar: Ah, aquele filme! Aquilo é que é mandar tudo pro inferno, de vez, e esse é um risco que todos corremos; Mara: criar filho hiperativo corresponde a um noviciado completo, com todas as renúncias pessoais incluídas e, por isso, quem sabe, vc fala da vida com tanta categoria.

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  7. A gota d'água e pronto - um dia de fúria. Quem já não teve esteve muito perto. E o medo maior é esse mesmo que Daniel genialmente retrata: a paúra de si próprio, daquilo que por um triz estivemos a ponto de fazer. Perfeito, mestre.

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  8. Perfeito é vc. Aliás, chegou tarde, hoje. O que houve? Tava quase baixando a lona da tendinha ... kikikiki ... Abraços.

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