Conflito de encarnações
* Por Marcelo Sguassábia
- Oi, amor.
- Ichi, atrasou um minuto e trinta hoje, heim. Cheguei a alimentar a esperança de que não viesse mais.
- Imagina, quem é morto sempre aparece.
- Dá pra falar sério ou vai continuar com a brincadeira?
- Brincadeira por brincadeira, foi você quem começou com aquela do copo. Não se deve invocar espíritos levianamente. Você perguntava, eu respondia. Foi assim uma semana inteira, toda noite, lembra? Você xavecando, querendo saber da minha vida e da minha morte, cada vez mais interessado. Não tem por que estar reclamando agora. Quem devia reclamar na verdade era eu, pois me comunicava por uma porcaria de um copo de extrato de tomate com uma crosta de sujeira no fundo e trincado na borda. Bem ao seu estilo, diga-se de passagem. Macho, desleixado, com noções precárias de higiene e ainda por cima encarnado. Arghh!
- Pois então não viesse. O que você queria, taças de cristal da Bohemia? Eu diria que o copo utilizado estava à altura da sua elevação espiritual. Aliás, eu já devia ter desconfiado do seu nível quando, ao falar sobre espíritos obsessores naquela tábua com as letras do alfabeto, você escreveu obsessão com c cedilha. O Aurélio está à disposição em algum lugar do céu, você podia tomar umas aulas particulares com ele.
- Ah, só faltava você me jogar essa na cara. Aqui no mundo dos espíritos ninguém precisa se preocupar com ortografia, bastam as boas vibrações. Coisa que você há muito tempo não vem emitindo pra mim. Já cansei de explicar pra você que somos almas gêmeas e que estamos juntos desde que o mundo é mundo. Só nos separamos temporariamente por um desencontro de encarnações...
- Olha, por mim eu deixava esse desencontro desencontrado pela eternidade afora. Quando eu for dessa pra melhor você estará encarnando de novo, e assim sucessivamente. Vai ser melhor pra nós dois. Com tanto fantasminha simpático aí em cima, logo você esquece de mim.
- Ledo engano, meu charmoso boneco de carne. Estarei sempre ao seu lado.
- Tá, e a minha privacidade, onde fica? Heim? Falar em privacidade, nem na privada tenho sossego, até no banheiro você dá o ar da graça querendo discutir a relação. Tenha dó. Quero mais é que comece logo o horário de verão, já que escurece mais tarde e eu ganho uma horinha antes de você baixar pra me encher a paciência.
- Ok, prometo ser mais discreta em minhas aparições daqui pra frente.
- Melhor ainda se limitá-las a umas duas vezes por semana, quando muito. E dê preferência aos dias de faxina, quando eu não estiver em casa.
- Bom, eu não desci aqui pra brigar com você. Mudando de assunto, como estou hoje?
- Com toda certeza, mais pálida que o costume.
- E lhe agrada? Musas geralmente são pálidas.
- Embora a palidez nesse caso seja da natureza cadavérica. E decididamente não sou chegado em necrofilia.
- Que é isso querido, não curte uma alma pelada? Imagina nós dois num caixão de casal, com rendinhas negras e colchão de água...
- Não fala assim que é pecado. Na condição de espírito você devia dar o exemplo.
- Ai, que santinho. Leio seus pensamentos o tempo todo e sei que você é um devasso. E se continuar assim, vai direto pro inferno.
- Deus me livre. Pra encontrar você lá?
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassábia
- Oi, amor.
- Ichi, atrasou um minuto e trinta hoje, heim. Cheguei a alimentar a esperança de que não viesse mais.
- Imagina, quem é morto sempre aparece.
- Dá pra falar sério ou vai continuar com a brincadeira?
- Brincadeira por brincadeira, foi você quem começou com aquela do copo. Não se deve invocar espíritos levianamente. Você perguntava, eu respondia. Foi assim uma semana inteira, toda noite, lembra? Você xavecando, querendo saber da minha vida e da minha morte, cada vez mais interessado. Não tem por que estar reclamando agora. Quem devia reclamar na verdade era eu, pois me comunicava por uma porcaria de um copo de extrato de tomate com uma crosta de sujeira no fundo e trincado na borda. Bem ao seu estilo, diga-se de passagem. Macho, desleixado, com noções precárias de higiene e ainda por cima encarnado. Arghh!
- Pois então não viesse. O que você queria, taças de cristal da Bohemia? Eu diria que o copo utilizado estava à altura da sua elevação espiritual. Aliás, eu já devia ter desconfiado do seu nível quando, ao falar sobre espíritos obsessores naquela tábua com as letras do alfabeto, você escreveu obsessão com c cedilha. O Aurélio está à disposição em algum lugar do céu, você podia tomar umas aulas particulares com ele.
- Ah, só faltava você me jogar essa na cara. Aqui no mundo dos espíritos ninguém precisa se preocupar com ortografia, bastam as boas vibrações. Coisa que você há muito tempo não vem emitindo pra mim. Já cansei de explicar pra você que somos almas gêmeas e que estamos juntos desde que o mundo é mundo. Só nos separamos temporariamente por um desencontro de encarnações...
- Olha, por mim eu deixava esse desencontro desencontrado pela eternidade afora. Quando eu for dessa pra melhor você estará encarnando de novo, e assim sucessivamente. Vai ser melhor pra nós dois. Com tanto fantasminha simpático aí em cima, logo você esquece de mim.
- Ledo engano, meu charmoso boneco de carne. Estarei sempre ao seu lado.
- Tá, e a minha privacidade, onde fica? Heim? Falar em privacidade, nem na privada tenho sossego, até no banheiro você dá o ar da graça querendo discutir a relação. Tenha dó. Quero mais é que comece logo o horário de verão, já que escurece mais tarde e eu ganho uma horinha antes de você baixar pra me encher a paciência.
- Ok, prometo ser mais discreta em minhas aparições daqui pra frente.
- Melhor ainda se limitá-las a umas duas vezes por semana, quando muito. E dê preferência aos dias de faxina, quando eu não estiver em casa.
- Bom, eu não desci aqui pra brigar com você. Mudando de assunto, como estou hoje?
- Com toda certeza, mais pálida que o costume.
- E lhe agrada? Musas geralmente são pálidas.
- Embora a palidez nesse caso seja da natureza cadavérica. E decididamente não sou chegado em necrofilia.
- Que é isso querido, não curte uma alma pelada? Imagina nós dois num caixão de casal, com rendinhas negras e colchão de água...
- Não fala assim que é pecado. Na condição de espírito você devia dar o exemplo.
- Ai, que santinho. Leio seus pensamentos o tempo todo e sei que você é um devasso. E se continuar assim, vai direto pro inferno.
- Deus me livre. Pra encontrar você lá?
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Comunicação espiritual? Humor funéreo? Seja o que for, é de primeira grandeza, show de humor que tira gargalhadas, tamanha a competência. Só podia ser vc, mestre Marcelo, que vai sempre à dianteira sem competidores. Parabéns! Levitei de tanto rir.
ResponderExcluir"Alma pelada" é ótima. Espírito, sem carne, que coisa mais chata. Onde fica a diversão? Rir é melhor. O absurdo desse diálogo vai além da criação. Diverte!
ResponderExcluirMarcelo,
ResponderExcluirDiálogo criativo e divertido !
Eu diria que uma crônica do " outro mundo" para espirito nenhum botar defeito.
A " Alma pelada" é uma tremenda mala!
Até do " outro lado da vida " a mulherada está no " osso" . Ui !