segunda-feira, 31 de agosto de 2009




Del semeou utopias mundo afora

* Por Eduardo Murta

Daqui se vislumbra a geografia das veias ao dorso da mão de Del, enquanto risca sonhos ao ar. Está lá, junto às crianças, noutra manhã em que uma vez mais se apresentava como mero pescador de ilusões. Toureara inimigos ferozes e agora duela é com o tempo. O corpo num tremor singular. Peso da idade. Fazia anos não celebrava aniversários, porque, julgava, seriam mera ode à morte.

Daí esse reunir de meninos e meninas representar tanto. Era sinal de encantadora provocação à vida. Importava pouco seu sotaque arrastado ou o esquecimento momentâneo sobre o que dissera instantes atrás. Havia um quê de ternura travestida em utopia quando abria as aulas no barraco modesto, paredes por caiar. Exibia o giz à ponta dos dedos como a um troféu. “Nasce aqui o atalho para a revolução”, costumava repetir.

Soava grego aos alunos – 7, 8, 10 anos. Mas se rendiam àquela eloqüência estrangeira. Mal sabendo eles, tampouco os adultos, o que o levara até ali. Estes só se davam conta da madrugada em que o estranho aportou por lá. As vozes discretas indicando as vielas. Se seguiriam semanas de clausura. Um mensageiro entregando pão e leite. E, artigo raro naquelas bandas, jornais.

Foi a barba à Papai Noel que dominou as atenções na manhã em que se apresentou. A comunidade entre a desconfiança e a acolhida espontânea tão peculiar à gente local. Era domingo. Dia de feira. Del à vigília de dois assistentes, ouvindo o bom dia farto, replicando com muito prazer. Se deslumbrando com as barracas e, ao final, distribuindo legumes, frutas e verduras assim ao léu. A rádio comunitária tamborilou o acontecimento ao longo da tarde e das horas que viriam.

Em uma semana, lá estava ele. Ares de professor, soletrando o bêabá com a meninada no salão alugado à crista da vila. Dona Patrocina, mexeriqueira, logo daria relatos rocambolescos: que se tratava, no fundo, de rei expatriado aos sinais graves de que ia virando refém da memória e dos desencontros diplomáticos. Começara, descreveu ela, com a reunião de ministros em que irrompera o salão nobre em cerolão, perseguindo sete galinhas D´angola.

Culminara com a recepção aos novos embaixadores, em que, pleno chá das cinco, decretara rodadas de Mojito e Daiquiri junto à sessão de torradas e biscoitos típicos. A gota d´água viria na celebração aos 40 anos de conquista do poder. Em lugar do hino nacional, atacou de bolero, emendou com chá-chá-chá, arrematou com canções de ninar.

Por honra histórica, seria veladamente retirado de cena. Estudaram grotões da Amazônia, confins da Patagônia, vilarejos da Guiana. Mas, pura inspiração livre, elegeram o Aglomerado da Serra, um cenário de desigualdades que acalentaria qualquer sentimento transformador. Meses à frente, e Del já se ambientara. Ainda que vez por outra sonhasse com disparos de canhão cortando os céus. E despertasse, o pijama vermelho empapado em suor, com a miragem dos opositores bradando que manchara para sempre suas mãos em sangue inocente.

Se afeiçoara ao jeito tupiniquim de estilhaçar intimidades, como quem molha as plantas ou coa um café. Pensou, assim, que podia também compartilhar as deles. Iria revelar tudo. E a turma fez foi gargalhar na birosca de tábuas. Nove doses de rum barato, um charuto de oitava, que abandonara havia anos, foi enumerando o que enxergava como glória. A de ter comandado o maior movimento revolucionário entre os povos das Américas.

Mencionava, e os lábios tremiam ao pedido: morresse, onde quer que o enterrassem, cova simples que fosse, queria inscrição talhada em pedra: “Aqui descansa Fidel Castro, humilde semeador de utopias”. Fez-se um silêncio de quem pouco crê no que acabara de ouvir, que lembrava o dos opositores que nele viam um mero ditador e nada mais. Deu de ombros e, passadas trôpegas, estendeu o giz que trazia no bolso a um dos meninos à porta do bar. Revestiu o gesto de sentido emblemático, à crença de que, letra por letra, descortinava pequenos atalhos para a revolução.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

5 comentários:

  1. Havia um quê de doçura nos antigos mitos da esquerda. Dom Hélder foi um. Jango, outro. Che nem se fala. Fidel, ainda sobrevivente, nos emociona com uma combatividade que, desconfio, nunca morrerá e que merece crônicas como a tua, Murta, cheia de reverência, de encantamento. Parabéns.

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  2. Hoje atendi uma moça de 27 anos com uma camiseta com a famosa foto de Che na frente. Eu a perguntei de quem se tratava e ela disse ser Che Guevara. Questionei quem foi ele e ela me disse que era uma pessoa que lutava por uma vida melhor para todos. Não sabia de mais nada além disso. Expliquei ser ele argentino e médico, e que ele não era unanimidade, sendo um herói para uns e terrorista para outros, e ainda sim um ícone. Fidel também é assim. Tem seus erros e acertos, coisas do bem e do mal. Pedro nos ajudou com a foto, pois achei o texto, pelo menos até falar do charuto,meio enigmático. Mas é o seu estilo: esconder mais do que mostrar, numa linguagem muito elaborada, até mesmo sofisticada. Muito bem, caro Murta!

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  3. Obrigado pela leitura sempre tão gentil de vocês. Já combinei com o Fidel e vamos separar uma caixa de charutos (Cohiba) para cada um...
    Abraços (Ah, vejam que estou na conta Google da minha mulher, a Gardênia)

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  4. Que gloria se esta crônica carregada de emoção chegasse ao Fidel.Ele merece este texto tão bem escrito.Parabéns, Murta!
    Beijo
    Risomar

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  5. Gardênia ... Murta ... um casal botânico, praticamente um jardim em si!

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