quarta-feira, 26 de agosto de 2009




Vizinho

* Por Sayonara Lino

Nos dias frios e chuvosos, meu vizinho aparece na sacada de seu apartamento que fica em frente ao meu. Não o vejo nos dias mais quentes, engraçado, ele deve ser do avesso, parecido comigo. Ele também fica acordado de madrugada, na rede que fica na tal sacada, mas apenas olha para o tempo. Eu não consigo relaxar daquele jeito, estou sempre às voltas com mil trabalhos que arrumo para não pensar em outras coisas. Será que ele pensa tanto quanto eu? Ou consegue pensar lentamente e é um sujeito tranquilo? Não sei, não conheço meu vizinho, mas tenho amigos que moram na Inglaterra, com os quais converso através da internet. Isso é ótimo e um pouco estranho.

Ele deve estar aproveitando a quietude da noite para descansar e ficar um pouco só. Isso faz falta. Acho que ele é casado e tem três filhas. Estão sempre reunidos, todos juntos, parece um pai atencioso, um marido presente. Ele deve ter insônia e parece que fuma bastante. É, mulher e três filhas devem dar um bocado de trabalho. Ele deve estar tentando desligar-se um pouco, algum tempo sem ser solicitado pelas obrigações e responsabilidades. O que faríamos se não fossem os compromissos? Todo mundo desprogramado e entediado, não tenho certeza.

Acho que agora ele percebeu que eu estou espiando. Ajeitei a cortina para tentar disfarçar, mas fui detectada. "Ih, a vizinha xereta, aquela moça que está sempre acordada, não deve fazer nada da vida", ele deve pensar isso de mim. Ou então não pensa nada, o cara nem liga, mania que a gente tem de pensar no que os outros estão pensando. Criamos início, meio e fim para a vida alheia. Quanta imaginação.

Agora ele vai tentar dormir, já começou a movimentar-se. Ele dorme com a porta da sacada aberta, eu tenho mania de fechar tudo. Eu gosto daquela rede, deve ser do nordeste. Lá tem tanta rede bonita. Acho que eu trouxe uma de lá uma vez, fiz uma excursão maluca... onde será que guardei? Ah, eu gostei da dele, vai ver comprou aqui mesmo no Mercado Municipal. Eu sempre penso que tudo veio de longe, de outro lugar. Que coisa. Outra mania.

É, ele foi mesmo. Agora acendeu a luz do banheiro. Daqui a pouco vai deitar, dar um beijo na esposa, dormir, acordar e começar tudo de novo. Eu queria morar no prédio dele, só por uns tempos, para observar a movimentação do lado de cá. Eu sempre observo as pessoas. Queria entender o motivo de ser assim. Amanhã observarei outro vizinho.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Diretora de Jornalismo e redatora da Revista Mista, que é distribuída em Governador Valadares, Ipatinga e Juiz de Fora, MG e colunista do portal www.ubaweb.com/revista.

3 comentários:

  1. Hum...Uma crônica confessional, aconchegante, intimista...Gostei muito, ainda mais do final, quando a narradora admite as delícias de ser voyeur e decide bisbilhotar outro vizinho no dia seguinte. Todos dormem e ninguém sabe que vc é feliz ao seu jeito anônimo e discreto. Coisa de escritora, desconfio. Parabéns.

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  2. Obrigada Daniel, bacana seu comentário! Abraço!

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  3. A observação etnográfica, ou a simples observção é uma jeito meio jornalista de ser. Num bar, estando sozinhos, costumamos fazer enredos das outras vidas. Imaginamos ser a existência delas bem melhor e mais interessante que as nossas. Em geral as semelhanças com as nossas vidas são maiores do que pensamos: trabalho,filho, amor. Uma vez ou outra, alguma insônia. Qual desses ingredientes é o grande vilão da hora?

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