Em gala me vestirei para a morte
* Por Eduardo Murta
Muitos hão de estranhar que alguém se vista em gala para um ritual como este. Em que nada menos que, contraditório, não a vida, mas a morte é a senha para a suprema consagração. A mim, natural, como fora natural os avós de meus tataravós abençoarem aquela disputa ao feitio de um bem cultural e inalienável do lugar.
Assim, soava para lá de trivial o pedido de irmãs e mãe tão logo cravei os pés na cena do duelo: Queremos o sangue dele em nossas xícaras de chá. Falavam aquilo numa mescla de espontaneidade e rancor de quem trazia a faca entre os dentes. Me balançou o peso de estar em campo por honra à família. Um irmão e meu pai, que haviam tombado ali, a distância bem curta de onde me concentrava.
As imagens me chegavam frescas. Eu menino, ajudando no lustre do traje paterno. Foi a mim que pediu cuidar da aliança, do conjunto de barbear em ouro e dos clássicos de literatura dos quais raramente se apartava. Beijou-me o lado esquerdo da face, balbuciou um “volto já”. Jamais retornaria. O vermelho lhe brotando em abundância do abdômen e as mãos se entrelaçando às minhas foram ganhando consistência contrária, até os dedos se afrouxarem por inteiro.
O perdemos como perderíamos meu irmão em seguida. À silhueta da vingança, esbarrou na cegueira que desarma o ódio com facilidade juvenil. Postos no papel, serenidade, desenho tático para encurralar o adversário e cálculos de cada gesto acabaram devorados por um mar de fúria. E os tropeços lhe custaram definitivamente caros.
Eis por que elegi a frieza como minha bússola neste desafio. Fiz escalda-pés na noite anterior, provei de chá de laranjeira a capim santo – dizem que acalmam. E cuidei, noutra ponta, a que não me afastasse por inteiro do olho do furacão. As armas deixei postadas bem à cabeceira da cama. Cruzei a madrugada enamorando o contorno de cada peça, como fosse a extensão de meu desejo.
E eram. Tinham tudo a ver com a morte, e isso me confortava. Fiz então minhas orações logo cedo. Os céus haveriam de me proteger. As roupas em tom verde-esmeralda cheiravam a flores do campo. Numa singeleza que me comovia. Nelas enxerguei meu pai, meu irmão, e neles me fortaleci.
É em ambos que penso agora, presente no cenário que ao mesmo tempo me congela e vulcaniza a alma. O algoz, negro dos pés à cabeça, ruminando aparente calma a minha frente. Maldito!!! A linha que nos separa, imaginária, carrega a ambivalência de poder premiar com a vida, ou não. Em mais nada me concentro. E o burburinho da multidão é só um eco fragmentado, multifacetado ao vazio.
Vou fazer o primeiro movimento, chamando para a batalha. Miro mais que o inimigo diante de mim. Secura à boca, um coração que taquicarde ao peito e o traiçoeiro suor esbarrando à margem das sobrancelhas. Aqui, quem piscar morre. Meço os passos dele, calculo ação e reação. Desvio, e deixo a arma nele embandeirar-se, a ponto de corpo e lança parecerem uma só matéria. O touro vaga, como buscasse porto e, trôpego, me fita. Me dispo de qualquer misericórdia. Marcho seguro em sua direção. Cravo a estocada final. E em seus olhos vi, juro que vi, meu irmão e meu pai repousando em trajes de gala.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
* Por Eduardo Murta
Muitos hão de estranhar que alguém se vista em gala para um ritual como este. Em que nada menos que, contraditório, não a vida, mas a morte é a senha para a suprema consagração. A mim, natural, como fora natural os avós de meus tataravós abençoarem aquela disputa ao feitio de um bem cultural e inalienável do lugar.
Assim, soava para lá de trivial o pedido de irmãs e mãe tão logo cravei os pés na cena do duelo: Queremos o sangue dele em nossas xícaras de chá. Falavam aquilo numa mescla de espontaneidade e rancor de quem trazia a faca entre os dentes. Me balançou o peso de estar em campo por honra à família. Um irmão e meu pai, que haviam tombado ali, a distância bem curta de onde me concentrava.
As imagens me chegavam frescas. Eu menino, ajudando no lustre do traje paterno. Foi a mim que pediu cuidar da aliança, do conjunto de barbear em ouro e dos clássicos de literatura dos quais raramente se apartava. Beijou-me o lado esquerdo da face, balbuciou um “volto já”. Jamais retornaria. O vermelho lhe brotando em abundância do abdômen e as mãos se entrelaçando às minhas foram ganhando consistência contrária, até os dedos se afrouxarem por inteiro.
O perdemos como perderíamos meu irmão em seguida. À silhueta da vingança, esbarrou na cegueira que desarma o ódio com facilidade juvenil. Postos no papel, serenidade, desenho tático para encurralar o adversário e cálculos de cada gesto acabaram devorados por um mar de fúria. E os tropeços lhe custaram definitivamente caros.
Eis por que elegi a frieza como minha bússola neste desafio. Fiz escalda-pés na noite anterior, provei de chá de laranjeira a capim santo – dizem que acalmam. E cuidei, noutra ponta, a que não me afastasse por inteiro do olho do furacão. As armas deixei postadas bem à cabeceira da cama. Cruzei a madrugada enamorando o contorno de cada peça, como fosse a extensão de meu desejo.
E eram. Tinham tudo a ver com a morte, e isso me confortava. Fiz então minhas orações logo cedo. Os céus haveriam de me proteger. As roupas em tom verde-esmeralda cheiravam a flores do campo. Numa singeleza que me comovia. Nelas enxerguei meu pai, meu irmão, e neles me fortaleci.
É em ambos que penso agora, presente no cenário que ao mesmo tempo me congela e vulcaniza a alma. O algoz, negro dos pés à cabeça, ruminando aparente calma a minha frente. Maldito!!! A linha que nos separa, imaginária, carrega a ambivalência de poder premiar com a vida, ou não. Em mais nada me concentro. E o burburinho da multidão é só um eco fragmentado, multifacetado ao vazio.
Vou fazer o primeiro movimento, chamando para a batalha. Miro mais que o inimigo diante de mim. Secura à boca, um coração que taquicarde ao peito e o traiçoeiro suor esbarrando à margem das sobrancelhas. Aqui, quem piscar morre. Meço os passos dele, calculo ação e reação. Desvio, e deixo a arma nele embandeirar-se, a ponto de corpo e lança parecerem uma só matéria. O touro vaga, como buscasse porto e, trôpego, me fita. Me dispo de qualquer misericórdia. Marcho seguro em sua direção. Cravo a estocada final. E em seus olhos vi, juro que vi, meu irmão e meu pai repousando em trajes de gala.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
De gala é a tua literatura. Durante a leitura, ouve-se um fustão suntuoso ciciando contra o assoalho da casa silenciosa, uma reverência tal que os mais jovens jamais conhecerão. Quanto clima, coragem e saudade. Parabéns, Murta!
ResponderExcluirObrigado, caro Daniel. Se um só leitor sentir o que você descreveu a missão do texto já estará completa. Abraços
ResponderExcluirque clima, Eduardo! Quando sai seu livro de contos? Prevejo muito sucesso para você.
ResponderExcluirBeijo
Risomar
Já tenho um, o "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", de uma microeditora de BH, a Manuscritos. E textos para o segundo. Agora falta uma editora que me ame!!!!!!
ResponderExcluirAbraços
as palavras borbulham, as frases saltitam...imagens se formam. Filmo seus textos e os reproduzo em minha mente. Muito bom, muito bom mesmo. editora que te ame??? eu já amo!
ResponderExcluirTourada surreal com gosto de vingança. Nessa o touro levou a pior, como sempre. Não havia nada para distraí-lo, apenas,no caso do toureiro, as imagens paterna e fraterna como lembranças.
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