O
homem com medo
*
Por Gustavo do Carmo
Quando
criança, Afrânio tinha medo do escuro e do bicho-papão. Entre os
pavores reais estavam os bate-bolas no carnaval e as baratas. Dos
três primeiros perdeu quando cresceu, mas ainda continua com medo
dos insetos.
Na
escola, tinha medo de ficar de castigo e tirar nota baixa, o que não
deixava de acontecer. Quando tirava nota baixa, seus pais se
recusavam a assinar o boletim. Ele ficava com medo de ser castigado
por entregar o boletim sem assinatura e chegou ao ponto de
falsificar a do pai.
Chegou
à adolescência com medo de levar fora das namoradas. O temor se
concretizou. Era sempre humilhado pelas garotas (que exibiam os seus
musculosos namorados na porta da escola), que o chamavam de feio e
bobo, e também pelos garotos mais espertos, que diziam que ele era o
filho do professor de Química, de rosto marcado, dentuço e óculos
de fundo de garrafa como Afrânio usava na época.
Ele
também não gostava muito de estudar. Não tinha paciência para
decorar. Assim, teve dificuldades de passar no vestibular.
Obviamente, não foi aprovado para uma faculdade pública. Ficou com
medo de ficar sem estudar após o segundo grau.
Afrânio
tinha medo de trabalhar na loja do pai, que sempre o deixava pra
escanteio em favor dos seus parceiros de negócio. Também
morria de medo da cidade onde ficava o estabelecimento comercial do
pai, que já fora assaltado algumas vezes por lá.
Conseguiu
ser aprovado para uma faculdade particular na zona sul do Rio.
Suburbano, tinha medo de ser discriminado pelos colegas, o que
realmente aconteceu. Ingênuo, tinha medo de ser humilhado
pelos professores, o que de fato ocorreu, mas apenas por alguns. Os
demais ficaram com pena. Tinha medo de ser rejeitado pelas mulheres e
foi.
Já
era adulto e continuava com medo. Ainda na faculdade, tinha medo de
procurar estágio. Depois que se formou em jornalismo e publicidade
(tinha medo de fazer medicina e pôr a vida de alguém em risco, de
fazer direito e não saber defender um inocente e de fazer engenharia
e viver escravo dos números), ficou com medo de procurar emprego.
Nas
entrevistas era sempre descartado, pois ia com medo. Jamais conseguiu
emprego, mesmo com a pressão do pai e da irmã, que lhe obrigavam a
prestar concurso público. Tinha medo de ser funcionário público e
viver em greve. E também de não ser efetivado e nunca ganhar a tão
propagada estabilidade.
Não
aprendeu a dirigir porque teve medo de enfrentar o trânsito. Nunca
mais se interessou por mulheres. Desempregado, tinha medo de ser
humilhado pela família da namorada desconhecida. Obviamente, nunca
teve filhos. Tinha medo de crianças. Sempre teve, desde que ele
mesmo era criança.
Afrânio
já era um homem de corpo formado, quase se deformando pela gordura
abdominal. Mas o medo o impedia de amadurecer. Chegou aos 40 anos
ainda com medo da vida. Procurou um psicólogo. Descobriu que tinha
medo das responsabilidades. E tinha medo de enfrentar o medo.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração.
Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de
São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
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