Sátira
ganha espaço
A
União Soviética acabou, oficialmente, no Natal de 1991, com suas 15
Repúblicas semiautônomas conquistando a autonomia total, ou seja, a
independência e seguindo vida própria, como era antes de 1917.
Todavia, apenas agora, chegam às mãos dos leitores brasileiros,
posto que ainda timidamente, alguns livros de autores soviéticos
que, em decorrência da estúpida e estupidificante guerra fria,
contavam com o anátema dos lépidos detratores do comunismo. Daquele
vasto império só nos chegavam obras de dissidentes do regime,
endeusados (por razões óbvias), mesmo que literariamente seus
escritos fossem de qualidade inferior. Certas pessoas não entenderam
(e muitas ainda não entendem), que arte, literatura no meio, e
política, notadamente a ideologia, são como óleo e água: não se
misturam. Ou, pelo menos, não deveriam se misturar.
Um
dos principais lançamentos de 2010 (há,
portanto, já oito anos),
no mercado editorial brasileiro, é um romance do escritor soviético
(na verdade, ucraniano, pois nasceu em Kiev, em fins do século XIX),
Mikhail Bulgakov, intitulado “O mestre e a Margarida”. Trata-se
de bem-sucedida “ousadia” da Editora Objetiva, um “banquete”
de boa literatura aos que apreciam textos inteligentes, estimulantes,
polêmicos e bem escritos.
Esse
livro, por si só, tem uma história interessante. Teve quatro
versões e nunca foi terminado pelo autor. Começou a ser escrito em
1928, mas Bulgakov queimou esse primeiro manuscrito em 1930, em
represália ao que as autoridades comunistas haviam feito com outra
obra sua, de conteúdo cabalístico, vetada pela implacável censura
do regime stalinista. A União Soviética vivia, então, um de seus
momentos mais dramáticos, que foram os tais “julgamentos de
Moscou”, verdadeira caça às bruxas empreendida por Josep Stalin,
para se livrar de quem achava que poderia ameaçar sua permanência
no poder. Bem, mas não é o que nos interessa nestas reflexões.
Mesmo
havendo destruído essa primeira versão do romance, Bulgakov
resolveu retomar os trabalhos em 1931 e insistir na mesma história,
valendo-se da sátira para driblar a feroz censura. Terminou essa
segunda versão apenas em 1936. Pode-se dizer que, no que diz
respeito ao enredo, é a que foi lançada agora no Brasil. Mas o
autor não estava satisfeito com a redação, na qual detectou
defeitos que só ele viu. Iniciou, pois, uma terceira versão,
praticamente reescrevendo o romance todo, mas sem mexer no conteúdo,
posto que alterando a forma. Concluiu esse manuscrito em 1937. Ainda
não estava satisfeito. Caramba, nada satisfazia esse sujeito!
Continuou
mexendo, e mexendo e mexendo no texto. Só parou de trabalhar nessa
quarta versão quatro semanas antes da morte, ocorrida em 10 de março
de 1940, em Moscou. Consequência: o livro ficou inconcluso. Não
fosse sua terceira esposa, Yelena Chilovskaia (inspiradora,
inclusive, da personagem Margarida, figura central do enredo), o
romance jamais seria publicado nem na URSS, nem na Rússia e nem em
lugar algum. Foi ela que fez os derradeiros arremates e aparou as
derradeiras arestas. Mas Bulgakov era (posto que discretamente, por
questão de estratégia) adversário do regime, ao qual jamais
apoiou. Claro que as autoridades soviéticas não permitiriam a
publicação da obra, não, pelo menos, na íntegra.
Uma
versão censurada, com cortes de 12% do conteúdo, foi publicada em
1967. O romance inteiro só teve publicação por meio de cópias
mimeografadas, distribuídas clandestinamente pela oposição, nos
chamados “samizdat”. Em livro, a história escrita por Bulgakov e
concluída por sua mulher só foi publicado em 1973, e fora da União
Soviética, ou seja, em Frankfurt, na então Alemanha Ocidental.
Fica
claro que o “Fausto”, do genial alemão Johann Wolfgang Göethe,
foi a fonte de inspiração do escritor soviético e ele nunca
escondeu isso. Lógico que não vou reproduzir o enredo, nem mesmo
resumidamente, para não tirar seu prazer de leitura. Observarei,
somente, que a história se passa na Moscou de 1929, que recebe a
visita de Mefistófeles, ou Diabo como queiram. Para camuflar sua
identidade, ele se apresenta como Woland. E não visita a capital do
império soviético sozinho. Leva, em seu séquito, alguns
personagens sinistros, como Koroviev, ou Fagote; como o enorme gato
negro Bieguemot, além de Azazello, Abadonna e a bruxa Hella.
Mais
não direi nem sob tortura. Fanáticos religiosos russos queimaram,
em manifestação relativamente recente, em 2006, vários exemplares
do romance de Bulgakov, sob a alegação de que eram alegoria do
satanismo. Tremenda bobagem! Gente burra é que nem formiga: existe
em profusão e em todos os lugares.
Houve
outras publicações do livro em português, antes desta, da
Objetiva, todas da Editora Ars Poética, com tradução direta do
idioma russo feita por Konstantin Asryantz. Hoje, apesar de ainda ter
muitos opositores e detratores, principalmente fanáticos religiosos,
Bulgakov tem, principalmente em Moscou, uma legião de fiéis
admiradores e até seguidores. Seu apartamento na cidade, por
exemplo, onde se passa boa parte da trama do romance, foi
transformado em local de culto. No final dos anos 90 – coincidindo
com o colapso e extinção da URSS – foi transformado em um museu.
Vocês não acham que a forma como esse romance nasceu daria, por si
só, um interessantíssimo livro? Eu acho!!!
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Interessantes e curiosas voltas, até adquirir seu formato final.
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