Sentimento de urgência
*
Por Risomar Fasanaro
Amanheci hoje com um
sentimento de urgência. Que me perdoem meus ancestrais negros e
indígenas que viveram em ritmo de águas mansas, ou mesmo meu
bisavô, que quem sabe tenha sido pescador lá na Itália.
Hoje o que me move é a
urgência. Urgência de escrever aquela carta ao amigo distante que
sente ojeriza pela internet, pelo computador. Urgência de telefonar
para quem não chega nem a sentir ojeriza, simplesmente sequer
pensou em ter um computador. Nunca usou nem máquina de escrever, só
escreve a mão. Existe gente assim ainda?
Existe. Existe até um dos
maiores poetas do país que só escreve a lápis, e guarda todos os
toquinhos dos lápis que usou para escrever aqueles poemas lindos que
falam do que quase ninguém se dá conta: sapos, rãs, caracóis,
aranhas, formigas...E faz dessas coisas mínimas imagens grandiosas,
poesias belíssimas.
Um poeta que resgatou a força
do grafite, do lápis, em plena era da informática. Há algo mais
poético do que escrever um poema a lápis? Trata-se de alguém que
traz no sobrenome a matéria-prima que Deus usou para criar o homem:
Barros. Sim, falo do Manoel de Barros, que ficaria horrorizado com
essa coisa
que hoje me toma e que provavelmente jamais o domina: a pressa, a
urgência. Que também o Poeta me perdoe!
Hoje, todo meu corpo, toda
minha alma pede que eu me entregue à escrita daquele livro mal
começado, em que invento a história do meu bisavô que veio da
Itália buscar os filhos porque não aguentava de saudade, mas os
filhos, uns ingratos, não quiseram voltar a Salerno e ele morreu no
navio de volta, sozinho. Morreu de saudade.
Tenho urgência de inventar
esta história, pois não o conheci, não conheci nenhum dos meus
avós, nem maternos nem paternos, não sei sequer o nome daquele
bisavô, mas entre todos foi ele que escolhi. É por ele que sinto um
carinho tão grande como se o tivesse conhecido a vida inteira.
Não me perguntem como isso é
possível, não sei explicar meus sentimentos. Talvez dizendo que é
como se um dia quando eu ainda era um bebê, ele tivesse me embalado
em seu colo. Acho que assim fica mais fácil vocês entenderem.
Quando tinha uns seis, sete
anos, ouvi pela primeira vez a música “Torna Sorriento” e
comecei a chorar. Minha mãe me perguntou por que eu estava chorando
e respondi que estava com saudade. Saudade de quem? Não sei,
respondi. E continuei a chorar.
Sempre que me lembro disso,
penso na possibilidade de a gente trazer no DNA algumas lembranças
que foram tão fortes em nossos ancestrais, que as carregamos através
das gerações. Pois de outra forma, de onde viria aquela dor?
Tenho pressa. Preciso escrever
esta história. Preciso telefonar para alguns amigos. Terminar de
bordar uma almofada de veludo que comecei pra presentear uma amiga.
Meu Deus! Quanta coisa inacabada... Dar os retoques finais a uma
caixinha de chá, ler o Antigo Testamento, reler os poemas de
Fernando Pessoa. Escrever um comentário sobre alguns livros. Visitar
uma pessoa que ficou cega e que é muito, muito importante em minha
vida.
Será que todas as pessoas
têm, de vez em quando, este sentimento de urgência? É como se eu
estivesse com uma das mãos cheia de areia e que por ser uma areia
muito fina e muito seca, começasse a escorrer por entre os dedos,
antes que eu chegue aonde quero chegar. Sim, acho que agora atino
para o sentimento que me tomou hoje. Um novo ano se inicia e a alma
também tem uma ampulheta...
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e
escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra
vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto
por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.
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