A
Copa do Mundo na ditadura
*
Por
Urariano Mota
Nelson
Rodrigues já havia escrito, com todo seu gênio e cinismo, que a
seleção brasileira de futebol era “a pátria em calções e
chuteiras, a dar rútilas botinadas, em todas as direções, como um
centauro truculento”. Que cínico, nos dizíamos, que cínico e
safado, praguejávamos, porque naquele ano de 1970 a distância e o
distanciamento não eram possíveis. Estávamos em uma ditadura
militar, o ditador Médici utilizava a seleção como uma arma da
Pátria contra o comunismo, e falava aos maus brasileiros, aos
subversivos, aos terroristas: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Nas
fotos, os olhos claros do ditador, os vincos a descer na sua carranca
possuíam a expressão de um vampiro.
Em
21 de junho de 1970, portanto, o clima não era bom, não podia, não
deveria ser bom. Para os que andavam de mal com a ditadura, o tempo
não estava bom. Apesar de cair em um domingo.
Meus
amigos Mário Sapo, Spinelli e Anael bem que procuraram ocupação
mais digna que ver a final da Copa do Mundo. Missão, como o título
de um seriado da televisão da época, Missão Impossível. Ainda que
fossem a um convento, entre as orações e cânticos dos frades mais
santos, não conseguiriam. Havia um clima, essa expressão que viemos
a conhecer depois. Mas era mais que “um clima”. Havia uma final
de copa do mundo escrita nas nuvens, no céu, no mar. O selecionado
brasileiro de futebol estava em todas as coisas. Nos jornais, na
televisão, no cinema, nas escolas, nas ruas, no amor, nas conversas.
Aliás, outro assunto não era possível, a partir de todo e qualquer
tema. “E a seleção?”. perguntava-se a troco de nada, e o rumo
na conversa era perdido.
Para
complicar, havia um complicador, se nos permitem a complicação.
Havia um complicador para o alheamento dos amigos àquela imensa
alienação, àquela estupidez da alienação dos povos, àquele ópio
dos ignorantes: a Copa do Mundo de 1970, assim mesmo, em maiúsculas,
era a primeira Copa transmitida pela televisão. Ao vivo, como
diziam. Do México, com imagens transportadas de um satélite. O que
bem poderia ser dito por João Saldanha: “Meus amigos, toda
realidade exterior ao futebol hoje está suspensa”.
Missão
impossível para José Amaro Correia, sociólogo depois, mas a quem
chamávamos, por trás, de Mário Sapo. Missão impossível para
Spinelli, mais tarde ilustre cientista político. Missão impossível
para Anael, que seria em anos menos traumáticos professor de
português. Missão impossível para todos militantes socialistas do
Brasil. Em algum lugar deve haver uma lição da dialética que
ensina: se as missões se tornam impossíveis, o melhor é conviver
com a sua impossibilidade. Mas não sabíamos disso então. Esta
página ainda nos era arrancada, ou devia estar escrita em sânscrito
intraduzível naqueles anos. Ninguém nos disse. Mário, o mais velho
de nós, teve um primeiro recuo tático.
— Olha,
a massa está sendo manipulada. A ditadura está usando esse jogo
para sair fortalecida... — Essa foi a primeira parte do discurso,
indispensável, para não ser execrado. — ... Agora... — Segunda
e problemática parte, a mais importante. — ... Agora, a gente não
pode ser contra a massa. A gente não pode ser contra o povo. Se o
povo está assistindo...
— Populismo,
caralho. Se o povo está assistindo, nós também vamos assistir? É
isso?! — cortava Spinelli. — A vanguarda repete a massa, é isso?
— Sim,
Lênin — voltava Mário com ironia. — Sim, Lênin...
Ao
que o magro Anael, sabedor por intuição e experiência aonde
levavam os argumentos de Mário (libação, cerveja, que ninguém é
de ferro), interveio, como um eleitor, porque democrático era o
processo:
-
Eu estou com Mário. O povo é quem sabe o rumo. — E adaptou
um refrão: - Ruim com o povo, pior sem ele.
— Sim,
mas — sentiu-se encurralado Spinelli. — Sim, mas...
Mas
antes que entrassem em discussão as categorias ontológicas do
conhecimento sobre o que é o povo, o que é a massa, o que é a
vanguarda, e o tempo histórico, e sua urgência e emergência,
Mário, o mais velho, propôs:
— Vamos
discutir isso no Savoy.
O
Bar Savoy era uma festa, sempre. Foi para ele que Carlos Pena
escreveu “são trinta copos de chope / são trinta homens sentados
/ trezentos desejos presos / trinta mil sonhos frustrados”. Foi
para o Savoy que Jomard Muniz de Brito falou “o Recife é um
chope”. Foi para ele que os personagens de Os Corações Futuristas
estenderam os olhos mendigos de cerveja, porque ali se podia beber a
felicidade sobre mesinhas de ferro. O Savoy era uma festa.
Os
nossos amigos, os nossos, naquelas circunstâncias, heróis,
sentaram-se a um canto, um pouco à margem do aglomerado de
torcedores, que rodeava um dos televisores no Savoy. Diabo de copa do
mundo; vieram ali para conversar sobre os rumos da revolução e do
Brasil. De costas para a alienação. Acintosamente alienados da
alienação. No entanto, Mário, sempre o mais precavido dentre nós,
sentou-se de frente para a televisão. Porque ver, o simples ver, não
atrapalha, ou não devia atrapalhar todo e qualquer desenvolvimento
da argumentação, da mais reles matéria sobre a ditadura até a
metafísica.
— A
gente aqui pode falar à vontade. Ninguém nos escuta — Spinelli
disse. E por isso retomou: — A Revista da Civilização é a melhor
frente de esquerda hoje no Brasil. Vocês viram a deste mês?
— Eu
prefiro a fonte. Eu prefiro o original — Anael argumentou um tanto
incômodo e angustiado pelo barulho da massa às costas.
— É,
é... - Mário ia respondendo, enquanto movia os olhos, pensativo,
mui pensativo, a todo e qualquer encaminhamento da dialética na
televisão.
— Não,
rapaz, em relação a muita coisa, Nelson Werneck Sodré não é
reformista, entende? – Spinelli perguntou.
— Claro...
É... — Mário ia respondendo.
Havia
uma tensão no ar, uma carga explosiva que se ia acumulando, sem
alarde. Um movimento surdo passando, que ninguém percebia, ainda que
todos dele participassem. Um coletivo de gozo ou desespero a irromper
em volta. Então de repente, como se por força de um comum desejo,
no décimo e oitavo minuto da exposição do destino dos povos, o
povo mais próximo, no Savoy, explode:
— Gooool!
Gol, gol, gol! Goool!
Mário,
por estar mais integrado à massa, por esse motivo também se
levanta:
— Gool!
É gol, é gol, é gol !...
Spinelli
e Anael, como bons subversivos, escolados (“a primeira tarefa do
revolucionário é não se denunciar”), por isso também se erguem:
— Gol!
Foi gol, cara... De quem, de quem? – Spinelli pergunta.
E
Mário, o flexível, o flexível atento, anuncia:
— De
Pelé. De Pelé, porra!
— Ah,
tinha que ser — reconhece Spinelli.
Os
garçons do Savoy, mais atentos que todos os atentos, comemoravam, e
em igual movimento de comemoração enchiam as mesas de cervejas, e
entre as mesas a dos nossos heróis. Que se achavam, na altura dos 20
minutos de jogo, os próprios terroristas disfarçados. Fantasiados
de povo, vale dizer, fantasiados de populares a beber no Savoy, em
jogo de Copa do Mundo. Mas não demoraram muito no disfarce, ainda
que isto lhes parecesse uma eternidade. A máscara caiu aos 38, ainda
no primeiro tempo do jogo, da fantasia e da defesa.
— Gol...
foi gol... Porra, que merda! Presta atenção, seu porra! Manda essa
bola pra tua mãe... — ouviu-se, foi-se ouvindo, aqui e ali, às
costas, à frente, de lado, do teto e das paredes, do chão e da
Avenida Guararapes, no Recife.
— Gol,
foi gol...
Um
carrasco de nome Boninsegna havia driblado o nosso goleiro, o
verdadeiro herói lá na televisão, e sem piscar enfiou o empate da
seleção da Itália. Mário, o tático, assumiu então as suas
características de sapo, porque inflou as bochechas e mal olhava
agora para a pequena tela, como se estivesse na iminência de coaxar.
Anael lhe seguia, com movimentos na bochecha, à sua imagem e
semelhança. Na verdade, à direita, à esquerda, acima e abaixo da
ditadura, todos no Savoy ficaram meio sapo, de papo inchado,
carrancudos, raivosos. Spinelli, ao ver a geografia humana ao redor,
susteve a frase na garganta, “futebol é alienação”, e achou
mais prudente, e natural, ficar em terra de sapo de cócoras com ele.
Em silêncio, todos se danaram a beber, que os garçons de Savoy
serviam bem a todos na alegria e na desgraça. Mercenários, tiravam
partido da pátria em qualquer circunstância.
Acabado
o primeiro tempo, quase todos no Savoy tiveram a mesma ideia, porque
se aglomeraram no banheiro. Ambiente para lá de carregado, elétrico.
Spinelli, magro e desengonçado, entra no círculo ácido do mijo no
banheiro. E até hoje ele não sabe por que razão, e até hoje ele
oculta dos amigos o momento raro do perigo que passou, e que soubemos
depois do abismo pulado. Acontece que na volta do banheiro, em um
corredor estreito e infernal, ele esbarra em um popular irado,
nervoso e tenso. Esbarra por acaso, por maldito azar, mas o popular,
essa categoria ótima para uma tese acadêmica, mas bem arisco ao
vivo, assim não entendeu.
— Tá
cego? — e empurrou o nosso amigo contra a parede.
Spinelli,
alto para os padrões do Recife, lutador de judô em aulas
clandestinas, porque assim faria a segurança nas passeatas, reagiu
ao empurrão. Ou seja, empurrou o popular de volta, como quem o
cumprimenta e vai embora. (Não era sua intenção saber o valor
prático das aulas de luta que recebera, tanto naquela hora quanto em
outras.) Mas o que faz, o que fez? O popular lhe responde com um mais
vigoroso empurrão. Spinelli volta, como se a parede do estreito
corredor fosse um elástico, que lhe desse um exemplo da terceira lei
de Newton, a toda ação corresponde uma reação. E volta com o
impulso da sua pequena massa inercial, somente para dar um instante
breve de resposta ao segundo empurrão. Nisto, e como prova
insofismável de que a toda desgraça corresponde outra ainda maior,
surge um indivíduo tão alto quanto o nosso amigo, porém mais
volumoso em carnes, peso pesado, pleno de vontade de brigar e de
músculos. Que vinha a ser o amigo do popular irritado. E lhe diz, a
Spinelli:
— Ei,
magro, é briga, é?
Spinelli
olhou de cima a baixo, e da direita para a esquerda o
homem-guarda-roupa. Sabemos nós, à distância, que os manuais de
filosofia ensinam que só se deve correr quando houver possibilidades
de espaço e circunstância. Mas o que não se encontra em nenhum
manual da dialética, nem nos melhores livros, foi a resposta de
gênio que achou o nosso amigo, naquela hora de angústia, agonia,
desespero e aflição. Acreditem e creiam, porque em pleno intervalo
do jogo final da copa do mundo, o nosso amigo gritou, com os braços
erguidos e levantados:
— Viva
o Brasil!
O
poderoso amigo do popular, espantado com aquele golpe baixo, de
gênio, reagiu como bom patriota. Abraçou Spinelli como se abraça
um companheiro de torcida.
— Viva!
Viva o Brasil!
Com
as costas ainda a estalar nos ossos, o nosso amigo Spinelli voltou ao
abrigo da nossa mesa. E todos nós assistimos ao final de Brasil e
Itália. De frente para a pequena tela, para melhor integração. E
comemoramos, e pulamos, e gritamos gol na vitória da seleção
brasileira por 4 X 1. Sem remorso e sem dor na consciência. E saímos
de lá abraçados e bêbados rumo ao Zumbi, onde morava Mário Sapo.
Felizes a cantar. Afinal, estávamos todos metidos em nossa face
legal. A de patriotas, no país de calções e chuteiras.
*
Texto do Dicionário Amoroso do Recife
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
.
Meu pai era apaixonado pela Revolução. Eu, na inocência dos meus 14 anos, torci loucamente pelo Brasil, me lembro desse jogo 4 X 1 contra a Itália, porém, nem imaginava o que seria uma Ditadura. Demorei a tomar pé da situação.
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