sábado, 16 de junho de 2018

A biosfera - Arnold Toynbee


A biosfera


* Por Arnold Toynbee

O termo "biosfera" foi criado por Teilhard de Chardin. É um termo novo, exigido por nossa chegada a um estágio mais avançado no progresso de nosso conhecimento científico e poder material. A biosfera é uma película de terra firme, água e ar que envolve o globo (ou globo virtual) de nosso planeta Terra. É o único habitat atual — e, tanto quanto podemos prever hoje, é também o único habitat jamais viável de todas as espécies de seres vivos que conhecemos, a humanidade inclusive.
A biosfera é estritamente limitada em seu volume e, por isso, contém um estoque também limitado dos recursos de que as várias espécies de seres vivos têm de lançar mão para se manterem. Alguns desses recursos são renováveis; outros, insubstituíveis. Qualquer espécie que utilize demais seus recursos renováveis ou esgote os insubstituíveis condena-se à extinção. O número de espécies extintas que deixaram vestígios no registro geológico é assombrosamente elevado em comparação com o número das ainda existentes.
A característica mais significativa da biosfera é seu tamanho relativamente pequeno e a exiguidade dos recursos que oferece. Em termos terrestres, a biosfera é fantasticamente delgada. Seu limite superior pode ser comparado à altitude máxima, na estratosfera, em que um avião pode permanecer no ar; seu limite inferior é a profundidade, abaixo da superfície de sua porção sólida, até onde os engenheiros podem perfurar e abrir minas. A espessura da biosfera, entre esses dois limites, é mínima, como uma película delicada, se comparada ao comprimento do ralo do globo por ela coberto. Este globo está longe de ser o maior dos planetas de nosso sistema solar, e também está longe de ser o planeta mais distante do sol, em torno do qual todos os planetas do sistema "giram" em órbitas que, na verdade, não são circulares, mas sim elípticas. E mais, nosso sol é apenas um dentre o número quase incrível de sóis que formam nossa galáxia, e nossa galáxia é apenas uma, dentre uma multidão de galáxias cujo número é desconhecido (o número de galáxias que se conhecem cresce a cada aumento no alcance de nossos telescópios). Assim, comparadas às dimensões da porção conhecida do cosmos físico, as dimensões de nossa biosfera são infinitesimalmente mínimas.
A biosfera não é tão antiga quanto o planeta que ora envolve. É uma excrescência — poderia também ser chamada de halo ou crosta — que começou a existir muito tempo depois da crosta do planeta haver esfriado suficientemente para que partes de seus componentes, originariamente gasosos, se liquefizessem ou solidificassem. Quase com certeza, é a única biosfera ora existente em nosso sistema solar, e é possível que, dentro deste sistema, nenhuma outra biosfera já tenha existido ou venha a existir. Naturalmente, nosso sistema solar, como nossa biosfera, é apenas uma parte ínfima da porção conhecida do cosmos físico. É possível que outros sóis — talvez vários outros — além do nosso possuam planetas e que, entre esses outros planetas possivelmente existentes, possa haver alguns que, como o nosso, girem em torno de seus sóis a uma distância em que, como nosso planeta, possam criar biosferas em volta de suas superfícies. Mas se, de fato, há outras biosferas em potencial, não se pode pressupor que sejam realmente habitadas por seres vivos, como a nossa. Num habitat em potencial para a vida, essa potencialidade não se realiza necessariamente.
A configuração física da matéria organicamente estruturada foi descoberta agora mas, como já foi observado, o contingente físico da vida, da consciência e do propósito não é a mesma coisa que a própria vida, consciência e propósito. Não sabemos como ou por que a vida, a consciência e o propósito começaram a existir sobre a superfície de nosso planeta. No entanto, sabemos atualmente que os constituintes materiais de nossa biosfera foram redistribuídos especialmente e recompostos quimicamente como resultado da interação entre organismos vivos e matéria inorgânica. Sabemos que um efeito da gênese de organismos vivos "primitivos" foi fornecer um filtro através do qual a radiação que bombardeia constantemente nossa biosfera, provinda de nosso sol e de outras fontes externas, é atualmente admitida em nossa biosfera com urna intensidade não apenas tolerável, como também hospitaleira para formas "superiores" de vida (o termo "superiores" com o significado de mais próximo à forma assumida pela vida na espécie homo sapiens um uso relativo e subjetivo do termo "superior").
Também sabemos que a matéria contida em nossa biosfera foi e está sendo constantemente permutada ou "reciclada" entre as porções dessa matéria que, num dado momento. são inanimadas e animadas e que, na porção animada, no dado momento, algumas seções são vegetais e outras são animais e ainda que, na seção animal, alguns espécimes são não-humanos e outros são humanos. A biosfera existe e sobrevive através de um delicado equilíbrio de forças, autorregulador e autopreservador. Os constituintes da biosfera são interdependentes e o Homem é exatamente tão dependente de sua relação com o resto da biosfera quanto qualquer dos outros atuais constituintes da mesma. Por um ato de pensamento, um ser humano pode destacar-se do resto da humanidade, do resto da biosfera e do resto do Universo físico e espiritual. A natureza humana, porém, inclusive a percepção consciente e a consciência moral, bem como a compleição humana, também só se encontra localizada na biosfera, e não temos qualquer prova de que seres humanos individuais ou a humanidade tenham - ou possam ter qualquer existência além de sua vida na biosfera. Se a biosfera deixasse de ser um habitat possível para a vida, o destino da humanidade, tanto quanto sabemos, seria a extinção que se estenderia então a todas as demais formas de vida.
Além disso, a biosfera potencial mais próxima da nossa (se é que, além da nossa, existe outra em algum ponto do cosmos físico) pode estar a centenas de milhões de anos-luz de nosso planeta. Em nossa geração, uns poucos seres humanos foram levados à superfície da lua de nosso planeta e, após uma rápida permanência ali, foram novamente trazidos à Terra, ainda vivos em quase todos os casos. Foi um feito magnífico da ciência aplicada à tecnologia, mas foi um feito ainda mais notável de sociabilidade, considerando-se que, até o presente momento, os seres humanos tiveram muito menos sucesso em suas relações uns com os outros do que em dominar a parte não-humana da Natureza. Esse feito deu-nos algumas lições de importância prática para a avaliação de nossas perspectivas e escolha de nossa política de ação na Terra. (...)
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Assim, nosso conhecimento e experiência atuais levam à conclusão de que o habitat dos naturais da biosfera localizada sobre a superfície do planeta Terra continuará confinado a essa cápsula. dentro da qual surgiu a vida, na forma como a conhecemos. Embora seja possível que existam outras biosferas habitáveis para os naturais da nossa biosfera, é tão improvável que possamos jamais alcançar e colonizar qualquer delas que não seria razoável levar essa possibilidade em consideração. De fato, é uma fantasia utópica.
Se concluirmos, então, que nossa biosfera atual, que até agora foi nosso único habitat, é também o único habitat físico que temos probabilidade de ter, essa conclusão irá exortar-nos a concentrar nossos pensamentos e esforços nesta biosfera: estudar sua história, prever suas perspectivas e fazer tudo o que a ação humana puder fazer para garantir que esta - que, para nós, e a -— biosfera permaneça habitável até que, com o passar do tempo, se torne inabitável em virtude de forças cósmicas além do controle humano.
O poder material da humanidade aumentou agora em tal grau que poderia tornar inabitável a biosfera e, realmente, irá produzir esse resultado suicida num período de tempo previsível, se a população humana do globo não empreender agora ação conjunta e vigorosa para conter a poluição e espoliação que estão sendo infligidas à biosfera pela ganância cega da humanidade. Por outro lado, o poder material da humanidade não bastará para garantir que a biosfera continue a ser habitável, na medida em que nos abstenhamos de destruí-la pois, embora a biosfera seja finita, não é autossuficiente. A Mãe-Terra não gerou a vida por partenogênese. A vida foi gerada na biosfera através da fertilização da Mãe--Terra por um pai: o Aton do faraó Aquenaton, o disco solar, que é "o Sol Inconquistável", "Sol Invictus" dos imperadores romanos ilírios. de Aureliano a Constantino, o Grande.
A reserva de energia física da biosfera — que é a fonte material de vida e também a fonte da força física presente na natureza inanimada, que o homem agora dominou — não se origina na própria biosfera. Essa energia física foi e é constantemente irradiada para a biosfera por nosso sol e também por outras partes cósmicas e o papel da biosfera, nessa recepção vital de radiação provinda de além de seus confins, é meramente seletivo. Já foi mencionado que a biosfera filtra a radiação que cai sobre ela. Admite os raios que geram a vida e repele os que são letais. Esse jorro benéfico de radiação sobre a biosfera a partir de fontes externas, porém, só continuará a ser benéfico enquanto o filtro não for retirado de ação, e enquanto essas fontes de radiação permanecerem invariáveis; e nosso sol, como todos os demais no cosmos estelar, está-se modificando constantemente. É concebível que, numa data futura, algumas dessas modificações cósmicas, em nosso sol ou em outras estrelas, possam alterar de tal forma a incidência de radiação recebida por nossa biosfera que tornem inabitável o que é hoje urna biosfera e, se e quando nossa biosfera for ameaçada por essa catástrofe, parece improvável que o poder material da humanidade seja suficientemente grande para conseguir neutralizar uma alteração mortal na influência de forças cósmicas. (…)
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A magnitude surpreendente da massa de matéria ex-orgânica na biosfera chama nossa atenção para alguns aspectos desconcertantes da história da vida (chamada erroneamente de "evolução", um termo que significa não uma alteração genuína, mas o "desdobramento" de alguma coisa que sempre existiu naquele lugar em estado latente). A vida diferenciou-se numa quantidade de gêneros e espécies distintos e cada espécie é representada por uma quantidade de espécimes. A multiplicidade de espécies e espécimes foi a condição que permitiu a progressão da vida, de organismos relativamente simples e fracos para organismos relativamente complexos e potentes, mas o preço dessa progressão, através de divisão e diferenciação, foi a competição e a luta. Cada espécie e cada espécime de cada uma das espécies compete com as demais pela posse dos constituintes da biosfera, inanimados e animados que, para uma determinada espécie e para seus espécimes, sejam recursos, no sentido de serem meios efetivos de manutenção da vida. Em alguns casos a competição foi indireta: uma espécie, ou um espécime de uma espécie, extinguiu outra ou outro não por ato de rapina ou extermínio, mas ganhando para si a parte do leão de algum recurso que, para ambos os competidores, é uma das necessidades vitais. Quando os espécimes de espécies não-humanas de animais lutam por alimentos, água ou acasalamento, os perdedores têm a fama de pedir clemência e recebê-la dos vencedores em troca de sua rendição. Os seres humanos têm a fama de ser os únicos animais que lutam entre si até a morte e que massacram as mulheres e crianças "do inimigo", bem como os velhos e combatentes masculinos. Essa fonte de atrocidade distintamente humana estava sendo perpetrada no Vietnã no momento em que eu escrevia essas palavras em Londres, e tem sido celebrada — e dessa forma, embora não intencionalmente. abominada — em famosas obras de arte criadas nos últimos 5.000 anos; por exemplo, a paleta do Rei Narmer, o baixo-relevo de Eannatum, a estrela de Naramsin e os monumentos de seus imitadores assírios subsequentes, as epopeias gregas de Homero e a coluna de Trajano.
Assim, a progressão da vida foi parasitária, em seu melhor aspecto, e predatória na pior das hipóteses. O Reino Animal tem sido um parasita do Reino Vegetal; os animais (pelo menos os animais não-marinhos) não poderiam vir a existir se a vegetação já não existisse como fornecedora vital de ar e alimento para os animais; algumas espécies de animais se mantêm matando e devorando animais de outras espécies, e o homem tornou-se um desses carnívoros desde a época em que saiu de seu abrigo anterior, no alto das árvores, e aventurou-se no solo, arriscando-se a ali matar ou morrer. As vítimas da progressão da vida são as espécies que se tornaram extintas e os representantes de espécies sobreviventes, que são continuamente massacrados. O homem domesticou algumas espécies de animais não-humanos para roubar-lhes seus produtos - leite ou mel - enquanto vivos, e matá-los implacavelmente para usar sua carne como alimento, e seus ossos, tendões, couro e peles como matérias-primas para a confecção de ferramentas e roupas.
Os seres humanos também têm feito presas entre si. O canibalismo e a escravatura têm sido praticados em sociedades altamente sofisticadas - ambas essas enormidades na Meso América pré-colombiana, por exemplo, e a escravatura nas sociedades greco-romana, islamita e ocidental moderna. Um escravo é um ser humano tratado como se fosse um animal doméstico não-humano e o caráter revoltante do tratamento dispensado pelo homem a animais não-humanos foi confessado implicitamente no movimento, durante os dois últimos século, em prol da abolição da prática de se escravizarem seres humanos. Além disso, a emancipação jurídica de escravos pode não liberá-los de fato, pois um homem juridicamente livre pode ser explorado servilmente. Um colono romano nominalmente livre no século IV de nossa era, bem como um decurião romano da mesma época, eram menos livres de fato do que um pastor romano, administrador de terra ou oficial escravo do imperador no século 1 de nossa era, ou do que um mameluco islamita (este termo árabe significa "reduzido a ser uma peça de propriedade"; no entanto, para um mameluco, a escravidão jurídica era o meio para se tornar amo e senhor de uma multidão de camponeses juridicamente livres). Nos Estados Unidos, os negros, emancipados juridicamente em 1862, percebem agora, mais de um século depois, e com justa razão, que a maioria branca de seus concidadãos ainda lhes nega direitos humanos plenos.(…)
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Vendo corno vive, na biosfera e no mundo espiritual simultaneamente, o Homem é na verdade um anfíbio, como foi habilmente chamado por Sir Thomas Browne e, cm cada um dos dois elementos em que vive, possui um objetivo. O homem, porém, não pode atingir os dois objetivos inteiramente, ou servir a dois senhores. Um de seus objetivos e um de seus senhores deve ser considerado supremo ou até mesmo receber dedicação exclusiva, caso os dois demonstrem ser incompatíveis e irreconciliáveis. Qual das duas alternativas deve ser escolhida? O debate acerca dessa questão tornou-se explícito na Índia, na geração de Buda, por volta da metade do último milênio a.C. Era explícito no Ocidente, na geração de S. Francisco de Assis, no século X~1II d.C. Em ambas as ocasiões, a escolha de alternativas opostas levou a uma separação entre pai e filho. Provavelmente o problema tem estado implicitamente em discussão desde o despertar da percepção consciente, pois uma das verdades fluas por ela reveladas ao ser humano é a ambivalência moral da natureza humana. Todavia, na maioria das vezes e no maior número de lugares até os dias de hoje, as pessoas têm evitado trazer à baila o problema que levou Buda e 5. Francisco a cortarem os laços naturais que os prendiam às respectivas famílias. Foi somente em nossa própria geração que a escolha tornou-se inevitável para a humanidade como um todo.
Em nossa geração o domínio total que o homem obteve sobre toda a biosfera está ameaçando derrotar as intenções do homem, destruindo a biosfera e exterminando a vida, inclusive a própria vida humana. Desde o século XIII o homem ocidental tem venerado abertamente Francesco Bernardone, o santo que renunciou à herança de um lucrativo negócio de família e foi recompensado com os estigmas de Cristo por haver esposado a Pobreza. O exemplo que o homem ocidental vem realmente seguindo, porém, não é o de S. Francisco; o homem ocidental tem imitado o pai do santo, Pietro Bernardone, o bem sucedido negociante de tecidos por atacado. Desde o início da Revolução Industrial, o Homem Moderno tem-se dedicado, de forma mais obsessiva que qualquer de seus antecessores, à busca do objetivo que lhe foi apresentado no primeiro capítulo do Livro do Gênese.
Parece que o homem não conseguirá salvar-se da destruição de seu poder e ganância materiais diabólicos, a menos que passe por uma mudança em seu coração, a qual o leve a abandonar seu objetivo presente, adotando o ideal contrário. Sua situação presente, imposta por ele mesmo, apresentou-lhe um desafio peremptório. Poderá o homem vir a aceitar, como regras práticas necessárias de conduta para pessoas de estatura moral comum, os preceitos pregados e praticados por santos, que até agora têm sido considerados conselhos utópicos de perfeição para l’homme moyen sensuel? O debate sobre este problema — que já vem de longe e parece estar-se aproximando de um clímax em nossos dias é o tema da presente crônica acerca do encontro da Humanidade com a Mãe-Terra.
(Livro “A Humanidade e a Mãe Terra, Uma História Narrativa do Mundo”, Segunda Edição, 1979 p. 22-40)..
 
 * Historiador britânico, cuja obra-prima é Um Estudo de História, em que examina, em doze volumes, o processo de nascimento, crescimento e queda das civilizações sob uma perspectiva global. 



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