A
biosfera
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Por Arnold Toynbee
O termo "biosfera"
foi criado por Teilhard de Chardin. É um termo novo, exigido por
nossa chegada a um estágio mais avançado no progresso de nosso
conhecimento científico e poder material. A biosfera é uma película
de terra firme, água e ar que envolve o globo (ou globo
virtual) de nosso planeta Terra. É o único habitat atual —
e, tanto quanto podemos prever hoje, é também o único habitat
jamais viável de todas as espécies de seres vivos que
conhecemos, a humanidade inclusive.
A biosfera é estritamente
limitada em seu volume e, por isso, contém um estoque também
limitado dos recursos de que as várias espécies de seres vivos têm
de lançar mão para se manterem. Alguns desses recursos são
renováveis; outros, insubstituíveis. Qualquer espécie que utilize
demais seus recursos renováveis ou esgote os insubstituíveis
condena-se à extinção. O número de espécies extintas que
deixaram vestígios no registro geológico é assombrosamente elevado
em comparação com o número das ainda existentes.
A característica mais
significativa da biosfera é seu tamanho relativamente pequeno e a
exiguidade dos recursos que oferece. Em termos terrestres, a biosfera
é fantasticamente delgada. Seu limite superior pode ser comparado à
altitude máxima, na estratosfera, em que um avião pode permanecer
no ar; seu limite inferior é a profundidade, abaixo da superfície
de sua porção sólida, até onde os engenheiros podem perfurar e
abrir minas. A espessura da biosfera, entre esses dois limites, é
mínima, como uma película delicada, se comparada ao comprimento do
ralo do globo por ela coberto. Este globo está longe de ser o maior
dos planetas de nosso sistema solar, e também está longe de ser o
planeta mais distante do sol, em torno do qual todos os planetas do
sistema "giram" em órbitas que, na verdade, não são
circulares, mas sim elípticas. E mais, nosso sol é apenas um dentre
o número quase incrível de sóis que formam nossa galáxia, e nossa
galáxia é apenas uma, dentre uma multidão de galáxias cujo número
é desconhecido (o número de galáxias que se conhecem cresce a cada
aumento no alcance de nossos telescópios). Assim, comparadas às
dimensões da porção conhecida do cosmos físico, as dimensões de
nossa biosfera são infinitesimalmente mínimas.
A biosfera não é tão antiga
quanto o planeta que ora envolve. É uma excrescência — poderia
também ser chamada de halo ou crosta — que começou a existir
muito tempo depois da crosta do planeta haver esfriado
suficientemente para que partes de seus componentes, originariamente
gasosos, se liquefizessem ou solidificassem. Quase com certeza, é a
única biosfera ora existente em nosso sistema solar, e é possível
que, dentro deste sistema, nenhuma outra biosfera já tenha existido
ou venha a existir. Naturalmente, nosso sistema solar, como nossa
biosfera, é apenas uma parte ínfima da porção conhecida do cosmos
físico. É possível que outros sóis — talvez vários outros —
além do nosso possuam planetas e que, entre esses outros planetas
possivelmente existentes, possa haver alguns que, como o nosso, girem
em torno de seus sóis a uma distância em que, como nosso planeta,
possam criar biosferas em volta de suas superfícies. Mas se, de
fato, há outras biosferas em potencial, não se pode pressupor que
sejam realmente habitadas por seres vivos, como a nossa. Num habitat
em potencial para a vida, essa potencialidade não se realiza
necessariamente.
A configuração física da
matéria organicamente estruturada foi descoberta agora mas, como já
foi observado, o contingente físico da vida, da consciência e do
propósito não é a mesma coisa que a própria vida, consciência e
propósito. Não sabemos como ou por que a vida, a consciência e o
propósito começaram a existir sobre a superfície de nosso planeta.
No entanto, sabemos atualmente que os constituintes materiais
de nossa biosfera foram redistribuídos especialmente e recompostos
quimicamente como resultado da interação entre organismos vivos e
matéria inorgânica. Sabemos que um efeito da gênese de organismos
vivos "primitivos" foi fornecer um filtro através do qual
a radiação que bombardeia constantemente nossa biosfera, provinda
de nosso sol e de outras fontes externas, é atualmente admitida em
nossa biosfera com urna intensidade não apenas tolerável, como
também hospitaleira para formas "superiores" de vida (o
termo "superiores" com o significado de mais próximo à
forma assumida pela vida na espécie homo sapiens um uso
relativo e subjetivo do termo "superior").
Também sabemos que a matéria
contida em nossa biosfera foi e está sendo constantemente permutada
ou "reciclada" entre as porções dessa matéria que, num
dado momento. são inanimadas e animadas e que, na porção animada,
no dado momento, algumas seções são vegetais e outras são animais
e ainda que, na seção animal, alguns espécimes são não-humanos e
outros são humanos. A biosfera existe e sobrevive através de um
delicado equilíbrio de forças, autorregulador e autopreservador. Os
constituintes da biosfera são interdependentes e o Homem é
exatamente tão dependente de sua relação com o resto da biosfera
quanto qualquer dos outros atuais constituintes da mesma. Por um ato
de pensamento, um ser humano pode destacar-se do resto da humanidade,
do resto da biosfera e do resto do Universo físico e espiritual. A
natureza humana, porém, inclusive a percepção consciente e a
consciência moral, bem como a compleição humana, também só se
encontra localizada na biosfera, e não temos qualquer prova de que
seres humanos individuais ou a humanidade tenham - ou possam ter
qualquer existência além de sua vida na biosfera. Se a biosfera
deixasse de ser um habitat possível para a vida, o destino da
humanidade, tanto quanto sabemos, seria a extinção que se
estenderia então a todas as demais formas de vida.
Além disso, a biosfera
potencial mais próxima da nossa (se é que, além da nossa, existe
outra em algum ponto do cosmos físico) pode estar a centenas de
milhões de anos-luz de nosso planeta. Em nossa geração, uns poucos
seres humanos foram levados à superfície da lua de nosso planeta e,
após uma rápida permanência ali, foram novamente trazidos à
Terra, ainda vivos em quase todos os casos. Foi um feito magnífico
da ciência aplicada à tecnologia, mas foi um feito ainda mais
notável de sociabilidade, considerando-se que, até o presente
momento, os seres humanos tiveram muito menos sucesso em suas
relações uns com os outros do que em dominar a parte não-humana da
Natureza. Esse feito deu-nos algumas lições de importância prática
para a avaliação de nossas perspectivas e escolha de nossa política
de ação na Terra. (...)
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Assim, nosso conhecimento e
experiência atuais levam à conclusão de que o habitat dos
naturais da biosfera localizada sobre a superfície do planeta Terra
continuará confinado a essa cápsula. dentro da qual surgiu a vida,
na forma como a conhecemos. Embora seja possível que existam outras
biosferas habitáveis para os naturais da nossa biosfera, é tão
improvável que possamos jamais alcançar e colonizar qualquer delas
que não seria razoável levar essa possibilidade em consideração.
De fato, é uma fantasia utópica.
Se concluirmos, então, que
nossa biosfera atual, que até agora foi nosso único habitat,
é também o único habitat físico que temos
probabilidade de ter, essa conclusão irá exortar-nos a concentrar
nossos pensamentos e esforços nesta biosfera: estudar sua
história, prever suas perspectivas e fazer tudo o que a ação
humana puder fazer para garantir que esta - que, para
nós, e a -— biosfera permaneça habitável
até que, com o passar do tempo, se torne inabitável em virtude de
forças cósmicas além do controle humano.
O poder material da humanidade
aumentou agora em tal grau que poderia tornar inabitável a biosfera
e, realmente, irá produzir esse resultado suicida num período de
tempo previsível, se a população humana do globo não empreender
agora ação conjunta e vigorosa para conter a poluição e
espoliação que estão sendo infligidas à biosfera pela
ganância cega da humanidade. Por outro lado, o poder material da
humanidade não bastará para garantir que a biosfera continue a ser
habitável, na medida em que nos abstenhamos de destruí-la pois,
embora a biosfera seja finita, não é autossuficiente. A Mãe-Terra
não gerou a vida por partenogênese. A vida foi gerada na biosfera
através da fertilização da Mãe--Terra por um pai: o Aton do faraó
Aquenaton, o disco solar, que é "o Sol Inconquistável",
"Sol Invictus" dos imperadores romanos ilírios. de
Aureliano a Constantino, o Grande.
A reserva de energia física
da biosfera — que é a fonte material de vida e também a fonte da
força física presente na natureza inanimada, que o homem agora
dominou — não se origina na própria biosfera. Essa energia física
foi e é constantemente irradiada para a biosfera por nosso sol e
também por outras partes cósmicas e o papel da biosfera, nessa
recepção vital de radiação provinda de além de seus confins, é
meramente seletivo. Já foi mencionado que a biosfera filtra a
radiação que cai sobre ela. Admite os raios que geram a vida e
repele os que são letais. Esse jorro benéfico de radiação sobre a
biosfera a partir de fontes externas, porém, só continuará a ser
benéfico enquanto o filtro não for retirado de ação, e enquanto
essas fontes de radiação permanecerem invariáveis; e nosso sol,
como todos os demais no cosmos estelar, está-se modificando
constantemente. É concebível que, numa data futura, algumas dessas
modificações cósmicas, em nosso sol ou em outras estrelas, possam
alterar de tal forma a incidência de radiação recebida por nossa
biosfera que tornem inabitável o que é hoje urna biosfera e, se e
quando nossa biosfera for ameaçada por essa catástrofe, parece
improvável que o poder material da humanidade seja suficientemente
grande para conseguir neutralizar uma alteração mortal na
influência de forças cósmicas. (…)
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A magnitude surpreendente da
massa de matéria ex-orgânica na biosfera chama nossa atenção para
alguns aspectos desconcertantes da história da vida (chamada
erroneamente de "evolução", um termo que significa não
uma alteração genuína, mas o "desdobramento" de alguma
coisa que sempre existiu naquele lugar em estado latente). A vida
diferenciou-se numa quantidade de gêneros e espécies distintos e
cada espécie é representada por uma quantidade de espécimes. A
multiplicidade de espécies e espécimes foi a condição que
permitiu a progressão da vida, de organismos relativamente simples e
fracos para organismos relativamente complexos e potentes, mas o
preço dessa progressão, através de divisão e diferenciação, foi
a competição e a luta. Cada espécie e cada espécime de cada uma
das espécies compete com as demais pela posse dos constituintes da
biosfera, inanimados e animados que, para uma determinada espécie e
para seus espécimes, sejam recursos, no sentido de serem meios
efetivos de manutenção da vida. Em alguns casos a competição foi
indireta: uma espécie, ou um espécime de uma espécie, extinguiu
outra ou outro não por ato de rapina ou extermínio, mas ganhando
para si a parte do leão de algum recurso que, para ambos os
competidores, é uma das necessidades vitais. Quando os espécimes de
espécies não-humanas de animais lutam por alimentos, água ou
acasalamento, os perdedores têm a fama de pedir clemência e
recebê-la dos vencedores em troca de sua rendição. Os seres
humanos têm a fama de ser os únicos animais que lutam entre si até
a morte e que massacram as mulheres e crianças "do inimigo",
bem como os velhos e combatentes masculinos. Essa fonte de atrocidade
distintamente humana estava sendo perpetrada no Vietnã no momento em
que eu escrevia essas palavras em Londres, e tem sido celebrada — e
dessa forma, embora não intencionalmente. abominada — em famosas
obras de arte criadas nos últimos 5.000 anos; por exemplo, a
paleta do Rei Narmer, o baixo-relevo de Eannatum, a estrela de
Naramsin e os monumentos de seus imitadores assírios subsequentes,
as epopeias gregas de Homero e a coluna de Trajano.
Assim, a progressão da vida
foi parasitária, em seu melhor aspecto, e predatória na pior das
hipóteses. O Reino Animal tem sido um parasita do Reino Vegetal; os
animais (pelo menos os animais não-marinhos) não poderiam vir a
existir se a vegetação já não existisse como fornecedora vital de
ar e alimento para os animais; algumas espécies de animais se mantêm
matando e devorando animais de outras espécies, e o homem tornou-se
um desses carnívoros desde a época em que saiu de seu abrigo
anterior, no alto das árvores, e aventurou-se no solo, arriscando-se
a ali matar ou morrer. As vítimas da progressão da vida são as
espécies que se tornaram extintas e os representantes de espécies
sobreviventes, que são continuamente massacrados. O homem domesticou
algumas espécies de animais não-humanos para roubar-lhes seus
produtos - leite ou mel - enquanto vivos, e matá-los implacavelmente
para usar sua carne como alimento, e seus ossos, tendões, couro e
peles como matérias-primas para a confecção de ferramentas e
roupas.
Os seres humanos também têm
feito presas entre si. O canibalismo e a escravatura têm sido
praticados em sociedades altamente sofisticadas - ambas essas
enormidades na Meso América pré-colombiana, por exemplo, e a
escravatura nas sociedades greco-romana, islamita e ocidental
moderna. Um escravo é um ser humano tratado como se fosse um animal
doméstico não-humano e o caráter revoltante do tratamento
dispensado pelo homem a animais não-humanos foi confessado
implicitamente no movimento, durante os dois últimos século, em
prol da abolição da prática de se escravizarem seres humanos. Além
disso, a emancipação jurídica de escravos pode não liberá-los de
fato, pois um homem juridicamente livre pode ser explorado
servilmente. Um colono romano nominalmente livre no século IV de
nossa era, bem como um decurião romano da mesma época, eram menos
livres de fato do que um pastor romano, administrador de terra
ou oficial escravo do imperador no século 1 de nossa era, ou do que
um mameluco islamita (este termo árabe significa "reduzido a
ser uma peça de propriedade"; no entanto, para um mameluco, a
escravidão jurídica era o meio para se tornar amo e senhor de uma
multidão de camponeses juridicamente livres). Nos Estados Unidos, os
negros, emancipados juridicamente em 1862, percebem agora, mais de um
século depois, e com justa razão, que a maioria branca de seus
concidadãos ainda lhes nega direitos humanos plenos.(…)
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Vendo corno vive, na biosfera
e no mundo espiritual simultaneamente, o Homem é na verdade um
anfíbio, como foi habilmente chamado por Sir Thomas Browne e, cm
cada um dos dois elementos em que vive, possui um objetivo. O homem,
porém, não pode atingir os dois objetivos inteiramente, ou servir a
dois senhores. Um de seus objetivos e um de seus senhores deve ser
considerado supremo ou até mesmo receber dedicação exclusiva, caso
os dois demonstrem ser incompatíveis e irreconciliáveis. Qual das
duas alternativas deve ser escolhida? O debate acerca dessa questão
tornou-se explícito na Índia, na geração de Buda, por volta da
metade do último milênio a.C. Era explícito no Ocidente, na
geração de S. Francisco de Assis, no século X~1II d.C. Em ambas as
ocasiões, a escolha de alternativas opostas levou a uma separação
entre pai e filho. Provavelmente o problema tem estado implicitamente
em discussão desde o despertar da percepção consciente, pois uma
das verdades fluas por ela reveladas ao ser humano é a ambivalência
moral da natureza humana. Todavia, na maioria das vezes e no maior
número de lugares até os dias de hoje, as pessoas têm evitado
trazer à baila o problema que levou Buda e 5. Francisco a cortarem
os laços naturais que os prendiam às respectivas famílias. Foi
somente em nossa própria geração que a escolha tornou-se
inevitável para a humanidade como um todo.
Em nossa geração o domínio
total que o homem obteve sobre toda a biosfera está ameaçando
derrotar as intenções do homem, destruindo a biosfera e
exterminando a vida, inclusive a própria vida humana. Desde o século
XIII o homem ocidental tem venerado abertamente Francesco Bernardone,
o santo que renunciou à herança de um lucrativo negócio de família
e foi recompensado com os estigmas de Cristo por haver esposado a
Pobreza. O exemplo que o homem ocidental vem realmente seguindo,
porém, não é o de S. Francisco; o homem ocidental tem imitado o
pai do santo, Pietro Bernardone, o bem sucedido negociante de tecidos
por atacado. Desde o início da Revolução Industrial, o Homem
Moderno tem-se dedicado, de forma mais obsessiva que qualquer de seus
antecessores, à busca do objetivo que lhe foi apresentado no
primeiro capítulo do Livro do Gênese.
Parece que o homem não
conseguirá salvar-se da destruição de seu poder e ganância
materiais diabólicos, a menos que passe por uma mudança em seu
coração, a qual o leve a abandonar seu objetivo presente, adotando
o ideal contrário. Sua situação presente, imposta por ele mesmo,
apresentou-lhe um desafio peremptório. Poderá o homem vir a
aceitar, como regras práticas necessárias de conduta para pessoas
de estatura moral comum, os preceitos pregados e praticados por
santos, que até agora têm sido considerados conselhos utópicos de
perfeição para l’homme moyen sensuel? O debate sobre este
problema — que já vem de longe e parece estar-se aproximando de um
clímax em nossos dias é o tema da presente crônica acerca do
encontro da Humanidade com a Mãe-Terra.
(Livro “A Humanidade e a Mãe
Terra, Uma História Narrativa do Mundo”, Segunda Edição, 1979 p.
22-40)..
*
Historiador
britânico, cuja obra-prima é Um Estudo de História, em que
examina, em doze volumes, o processo de nascimento, crescimento e
queda das civilizações sob uma perspectiva global.
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