Quando é a mente que nos trai
A
nossa mente, não raro, nos prega peças incríveis, ou nos apronta
surpresas que nos maravilham e nos deixam atônitos, ou nos trai sem
a menor cerimônia e nos derruba, arrasa e aniquila. Por mais que
julguemos nos conhecer, na verdade somos desconhecidos para nós
mesmos, completos estranhos, sabemos pouco ou nada a nosso respeito.
Isso chega a ser assustador.
Muitos
dos nossos talentos e aptidões permanecem trancados a sete chaves em
substratos profundos do nosso cérebro, que quase sempre nos são
inacessíveis pela vida toda. Pode ocorrer, no entanto, de, sem
qualquer aviso prévio, assim, de surpresa, tudo isso emergir, com
força, para o consciente e nos transformar (para melhor ou para
pior).
Conheço
casos (e não poucos) de pessoas que passaram a vida toda detestando
poesia, achando que se tratava de coisa de “maricas”. Aos 60
anos, ou mais, todavia, surpreenderam-se compondo versos de grande
força expressiva e muita sensibilidade e muitos se transformaram,
até, em refinados e prolíficos poetas. Por que isso acontece?
Mistério! Mas nossa mente nem sempre (diria, quase nunca) é tão
benigna e generosa nas surpresas que, amiúde, nos apronta.
Cabe,
aqui, um questionamento. Como se sente, digamos, um artista plástico,
um pintor consagrado, premiado em várias bienais, aplaudido e
acatado pela crítica e pelo público, com suas telas vendendo aos
montões e com sua cotação subindo de ano para ano, que,
subitamente, sem nenhum motivo ou razão, perca a habilidade de
pintar? Conheço muitos casos assim.
O
sujeito atingido por tal desgraça, por melhor que seja sua estrutura
mental, sobretudo psicológica, certamente irá “pirar”. Não
compreenderia, jamais, o que lhe aconteceu e, frustrado e infeliz,
iria procurar explicações (que não encontraria) até o último dos
seus dias. Eu piraria de vez se me acontecesse algo sequer parecido.
Essa
mesma perda de talento, este sumiço das nossas maiores aptidões
pode acontecer com qualquer um, artista ou não. Pode ocorrer com um
compositor, um escultor, um bailarino, um intérprete, um escritor ou
um ator. Nunca duvidem disso e se precavenham (se puderem).
Esse,
aliás, é o enredo do romance de um dos homens de letras mais
admirados, festejados e premiados da atualidade, o norte-americano
Philip Roth – candidatíssimo há pelo menos treze anos ao Prêmio
Nobel de Literatura – intitulado “A humilhação”.
O
livro, grande sucesso de vendas nos Estados Unidos, foi lançado no
Brasil pela Editora Companhia das Letras. Destaque-se a primorosa
tradução de Paulo Henriques Britto (raramente os tradutores são
mencionados pelos críticos, a não ser quando fazem péssimo
trabalho, que não é o caso).
O
personagem central de “A humilhação”, ao redor do qual toda a
história (logicamente) gira é Simon Axler. Trata-se de um
consagrado ator de teatro, tido e havido como dos melhores na arte de
representar, ganhador, por merecimento, de inúmeros prêmios que,
aos 65 anos de idade, subitamente, constata, e em pleno palco, que
não sabe mais atuar.
Esquece
as falas, entra em cena na hora errada, “recita” os diálogos sem
nenhuma naturalidade e se movimenta de forma desastrada e
incompetente, pior do que os piores amadores. A princípio, pensa que
essa experiência desastrosa foi fruto, apenas, de uma noite ruim.
Mas, nos dias seguintes, sua performance, que já era ridícula,
piora muito e descamba para o patético. A realidade que se lhe
apresenta é uma só: não sabe mais representar.
A
partir daí, sua vida se torna um inferno. Simon vê ruir uma
carreira que construiu com tanto esforço e dedicação. É vaiado e
ridicularizado pelo público. O diretor retira-o da peça, depois de
desmoralizá-lo e humilhá-lo, diante de todo o elenco. Com a débâcle
profissional – e como desgraça pouca é bobagem – tudo ao seu
redor desmorona.
A
mulher que ama, e que lhe jurava eterno amor, o abandona. E seu
agente não consegue convencê-lo a retornar ao palco, em outras
peças. Seu desespero cresce e a autoconfiança despenca a zero.
Simon só vê uma saída para tamanho desastre existencial: o
suicídio. Pôr fim à própria vida torna-se obsessão para ele.
É
quando o outrora bem-sucedido e agora fracassado ator interna-se numa
clínica psiquiátrica. Bem, todavia, mais do que isso não vou lhes
contar. Se quiserem saber como “A humilhação” termina, comprem
e leiam o livro, ora bolas.
Quanto
ao autor, Philip Roth, tudo o que eu escrever a seu respeito será
ainda muito pouco. Os amantes de literatura, certamente, devem ter
lido muitos dos seus livros, como “O complexo de Portnoy” (1969),
a trilogia de novelas “Pastoral americana” (1997), “Casei com
um comunista” (1998) e “A mancha humana” (2000) e muitos
outros.
Philip
Roth é, sem dúvida, um dos maiores escritores norte-americanos da
segunda metade do século XX. Gosto, sobretudo, do seu estilo
coloquial, do seu humor, às vezes ácido e da sua capacidade de
penetrar no âmago da alma humana e de lá extrair expectativas e
angústias que sequer se suspeita que existam.
Em
1998, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção, com a novela “Pastoral
americana”, e mais outras vinte premiações, antes e depois, só
de lambuja. O que é lícito de se esperar de um grande ficcionista?
Um grande romance, claro! É isto o que “A humilhação” é: um
livro para ser lido num só sopro, posto que “sentido na pele”.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Nenhum comentário:
Postar um comentário