segunda-feira, 25 de junho de 2018

Amizade - Emanuel Medeiros Vieira


Amizade


* Por Emanuel Medeiros Vieira


Era só amizade. Ela não tinha paixão por mim, eu também só a queria como amiga.
As pessoas não acreditam que isso possa existir.
Assim, não liberávamos os “baixos instintos”, como em certas estórias de “amor”: ciúme, raiva, posse, agressão etc.
Sempre caminhávamos.
Era uma manhã de sol pleno, maio, Planalto Central do país.
Alice tinha uns olhos “de verdade”. Seus interlocutores não a enganariam com facilidade.
E ela pegava na veia, ia direto ao ponto:
– “O que é pior: o câncer ou a tortura?”
A tortura.
– “Por quê?”
A tortura “fica” para sempre. O câncer, mesmo com reza brava, mata.
Ela parecia estar compadecida.
Eu temia cair na autopiedade.
Lembrei do que um cineasta dissera, quando indagado se acreditava no inferno “cristão”.
Ele não respondeu que o inferno era aqui mesmo.
Mas para ele, o inferno não existiria – seria apenas um mito.
O inferno era a ansiedade e a depressão – disse.
Alice complementou: “E a insônia”.
Eu iria dizer – mas pareceria pomposo: e a injustiça.
Mas a injustiça não era um inferno em si, mas uma espécie de “antivalor.
– “Nas estórias, as pessoas dizem frases heroicas, retumbantes, na hora de morrer”, ela disse.
Eu olhei para ela, uns bonitos olhos azuis, alta, magra.
Complementou:
– “O que você diria?”
Repetiria mestre Machado de Assis no sexto capítulo do seu romance “Quincas Borba”: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
–“Você é um romântico confesso: não diria isso”, Alice riu.
Espírito Santo, Entra na minha vida”, reivindicava meu pai, e dizia que, durante a existência, eu deveria pedir o mesmo. Ele era autêntico.
Alice perguntou:
– “Entrou?” – o Espírito Santo.
Fingi que não tinha escutado a indagação.
Espírito Santo, toca a minha vida”.
– “Tocou?”
Espírito Santo, renova a minha vida”.
– “Renovou?”
Não fingi mais que não havia escutado.
Disse:
Talvez Ele tenha deixado para fazer tudo isso na Hora Suprema.
Eu driblara a morte algumas vezes, mas ela ganharia sempre: tinha todo o tempo do mundo.
– “Vão te chamar de pessimista...”
Eu já estou acostumado. Só escrevo o que o sinto. Não sou relações públicas nem marqueteiro.
Meu pai acreditava que o Bem iria vencer. Mas muitas vezes advertiu: “Não subestimes a força o mal, meu filho”.
Subestimamos. Quebramos a cara.
Eu falei: Alice, quando passo por jardins de infância, vendo crianças muito pequenas, fico pensando nelas – não agora, mas no futuro.
– “Você sempre procurou entender a genealogia do Mal”, ela disse.
Por essa razão sempre li Dostoiévski, tentei brincar.
E pensei nesta gênese, através de Stavrogin– o personagem do escritor russo,em “Os Demônios”.
Seminal? Niilista total. Ele era tão forte que não conseguia defini-lo.
Foi um personagem premonitório que “antecipou” a Revolução Russa?
Não saberia dizer.
– “Citas muito”, falou Alice.
–“Quem não te conhece, poderá dizer que és um 'filósofo de boteco”, complementou.
Eu iria dizer: não ligo. Mas me importava sim.
Ela percebeu o meu desconforto e tentou suavizar.
– “Essa autenticidade total é impossível”, Alice comentou.
–“Queres captar tudo, sentir tudo, como uma esponja que tudo absorve”.
Fiquei em silêncio.
– “Muitos poderão pensar que é mera erudição, em uma estória na qual nada acontece”, reforçou.
Simulei um sorriso – era mais uma careta.
Ela olhou para mim.
– “Ficaste chateado ou aborrecido?”
Não.
– “E depois de Dostoiévski, buscaste entender ai culpa sem sentido”.
Sim: gosto muito de Franz Kafka.
E busquei entender o pecado e a Graça – redenção – lendo o cristão Graham Greene.
Mas na hora final, Alice, tentarei levar comigo a imagem de um berço, olhando, pedindo que alguma “força maior”, protegesse uma menina, ainda um bebê e, anos depois, um menino.
Não ficaram comigo, mas essa imagem ficará para sempre–colocava música numa vitrola para eles, sim, rezava.
Ela agora é adulta, ele adolescente.
Iria falar em “perdas”, mas temi cair no sentimentalismo e no vitimismo.
Seria piegas se caísse na queixa.
Ela riu de novo, me beijou no rosto, nos despedimos, a manhã terminava, as crianças saíam da escola, cada um com suas vidas – era apenas mais um dia, um dia nas nossas existências – que passaria também, e não sei a razão, em casa, fiquei olhando – e contemplando mais – uma foto emoldurada dos meus pais mortos.
(Brasília, junho de 2018)


* Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros. Foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura de 2018.




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