Amizade
*
Por Emanuel Medeiros Vieira
Era
só amizade. Ela não tinha paixão por mim, eu também só a queria
como amiga.
As
pessoas não acreditam que isso possa existir.
Assim,
não liberávamos os “baixos instintos”, como em certas estórias
de “amor”: ciúme, raiva, posse, agressão etc.
Sempre
caminhávamos.
Era
uma manhã de sol pleno, maio, Planalto Central do país.
Alice
tinha uns olhos “de verdade”. Seus interlocutores não a
enganariam com facilidade.
E
ela pegava na veia, ia direto ao ponto:
– “O
que é pior: o câncer ou a tortura?”
A
tortura.
– “Por
quê?”
A
tortura “fica” para sempre. O câncer, mesmo com reza brava,
mata.
Ela
parecia estar compadecida.
Eu
temia cair na autopiedade.
Lembrei
do que um cineasta dissera, quando indagado se acreditava no inferno
“cristão”.
Ele
não respondeu que o inferno era aqui mesmo.
Mas
para ele, o inferno não existiria – seria apenas um mito.
O
inferno era a ansiedade e a depressão – disse.
Alice
complementou: “E a insônia”.
Eu
iria dizer – mas pareceria pomposo: e a injustiça.
Mas
a injustiça não era um inferno em si, mas uma espécie de
“antivalor.
– “Nas
estórias, as pessoas dizem frases heroicas, retumbantes, na hora de
morrer”, ela disse.
Eu
olhei para ela, uns bonitos olhos azuis, alta, magra.
Complementou:
– “O
que você diria?”
Repetiria
mestre Machado de Assis no sexto capítulo do seu romance “Quincas
Borba”: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as
batatas”.
–“Você
é um romântico confesso: não diria isso”, Alice riu.
“Espírito
Santo, Entra na minha vida”, reivindicava meu pai, e dizia que,
durante a existência, eu deveria pedir o mesmo. Ele era autêntico.
Alice
perguntou:
– “Entrou?”
– o Espírito Santo.
Fingi
que não tinha escutado a indagação.
“Espírito
Santo, toca a minha vida”.
– “Tocou?”
“Espírito
Santo, renova a minha vida”.
– “Renovou?”
Não
fingi mais que não havia escutado.
Disse:
Talvez
Ele tenha deixado para fazer tudo isso na Hora Suprema.
Eu
driblara a morte algumas vezes, mas ela ganharia sempre: tinha todo o
tempo do mundo.
– “Vão
te chamar de pessimista...”
Eu
já estou acostumado. Só escrevo o que o sinto. Não sou relações
públicas nem marqueteiro.
Meu
pai acreditava que o Bem iria vencer. Mas muitas vezes advertiu: “Não
subestimes a força o mal, meu filho”.
Subestimamos.
Quebramos a cara.
Eu
falei: Alice, quando passo por jardins de infância, vendo crianças
muito pequenas, fico pensando nelas – não agora, mas no futuro.
– “Você
sempre procurou entender a genealogia do Mal”, ela disse.
– Por
essa razão sempre li Dostoiévski, tentei brincar.
E
pensei nesta gênese, através de Stavrogin– o personagem do
escritor russo,em “Os Demônios”.
Seminal?
Niilista total. Ele era tão forte que não conseguia defini-lo.
Foi
um personagem premonitório que “antecipou” a Revolução Russa?
Não
saberia dizer.
– “Citas
muito”, falou Alice.
–“Quem
não te conhece, poderá dizer que és um 'filósofo de boteco”,
complementou.
Eu
iria dizer: não ligo. Mas me importava sim.
Ela
percebeu o meu desconforto e tentou suavizar.
– “Essa
autenticidade total é impossível”, Alice comentou.
–“Queres
captar tudo, sentir tudo, como uma esponja que tudo absorve”.
Fiquei
em silêncio.
– “Muitos
poderão pensar que é mera erudição, em uma estória na qual nada
acontece”, reforçou.
Simulei
um sorriso – era mais uma careta.
Ela
olhou para mim.
– “Ficaste
chateado ou aborrecido?”
Não.
– “E
depois de Dostoiévski, buscaste entender ai culpa sem sentido”.
Sim:
gosto muito de Franz Kafka.
E
busquei entender o pecado e a Graça – redenção – lendo o
cristão Graham Greene.
Mas
na hora final, Alice, tentarei levar comigo a imagem de um berço,
olhando, pedindo que alguma “força maior”, protegesse uma
menina, ainda um bebê e, anos depois, um menino.
Não
ficaram comigo, mas essa imagem ficará para sempre–colocava música
numa vitrola para eles, sim, rezava.
Ela
agora é adulta, ele adolescente.
Iria
falar em “perdas”, mas temi cair no sentimentalismo e no
vitimismo.
Seria
piegas se caísse na queixa.
Ela
riu de novo, me beijou no rosto, nos despedimos, a manhã terminava,
as crianças saíam da escola, cada um com suas vidas – era apenas
mais um dia, um dia nas nossas existências – que passaria também,
e não sei a razão, em casa, fiquei olhando – e contemplando mais
– uma foto emoldurada dos meus pais mortos.
(Brasília,
junho de 2018)
*
Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em
Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do
efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo
nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava
simpósios”, entre outros. Foi
indicado ao Prêmio Nobel de Literatura de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário