“Recriando”
o nome
O
nome, aquele com que nossos pais nos registram em cartório, após
nosso nascimento, é o que nos confere identidade, certo? Errado.
Talvez nos identifique no âmbito da nossa família. Mas só talvez.
Não raro, nem isso acontece. Socialmente, então... É para lá de
comum o problema da homonímia, que muitas vezes traz confusões
imensas aos homônimos ou a um deles pelo menos. Até crimes são
imputados a inocentes, só por terem o mesmo nome dos verdadeiros
criminosos.
Há
casos de coincidências tão incríveis que dificultam ainda mais a
verdadeira identificação. Por exemplo, além de terem sido
registradas na mesma data, com o mesmo dia, mês e ano de nascimento,
duas pessoas diferentes – uma criminosa, por exemplo e outra
inocente – terem, também, os pais com o mesmíssimo nome. Aí... é
um inferno!
Mas
não são apenas esses casos extremos que geram confusões e
aflições. Todos nós batalhamos por ter nossa identidade firmada e
sermos reconhecidos por nossos eventuais talentos, méritos e obras,
sem dúvidas ou confusões. Em literatura (e em várias outras
atividades, claro, notadamente as artísticas e as esportivas), os
que se destacam recorrem a pseudônimos para serem reconhecidos sem
dúvidas. E estes, às vezes, se impõem de tal sorte, de tanto serem
divulgados, que em muitos casos o público jamais fica conhecendo o
nome de batismo de um determinado escritor (ou cantor, ou músico ou
jogador de futebol, não importa).
Trago-lhes,
hoje, dois casos que ilustram bem essa situação. Ambos foram
poetas. Os dois consagraram-se de tal sorte na literatura de seu país
(os dois nasceram numa mesma pátria) e na mundial, que conquistaram
Prêmios Nobel de Literatura. As semelhanças entre eles, contudo,
param por aí. Um, por exemplo, é homem e a outra mulher. Um foi
sumamente politizado, ideologicamente comprometido, comunista até a
medula, e fez carreira diplomática. A dama, por seu turno, tinha
fervor absoluto pelo magistério. Tamanho, que começou a lecionar
aos quinze anos de idade e nunca parou, mesmo depois da fama, de
haver conquistado o Nobel de Literatura.
Vocês
já adivinharam quais são as personagens a que me refiro? Não?! Vou
dar-lhes uma dica definitiva: ambos nasceram no Chile. Agora ficou
fácil, não é mesmo? Bem, para os distraídos ou os mal informados
revelo quem são esses notáveis escritores. São Gabriela Mistral e
Pablo Neruda. Poucos sabem que seus nomes de batismo não eram sequer
parecidos com estes. Quando revelei, dia desses, a um amigo, quais
eram, este chegou a duvidar, achando que eu estava brincando. Não
costumo, contudo, brincar com coisas sérias e muito menos quando se
trata de comentar uma atividade que venero e com a qual me sinto
comprometido, de corpo e alma, como é o caso da literatura.
O
nome de batismo de Gabriela Mistral, por sinal bastante extenso, é
Lucila de Maria Del Perpétuo Socorro Godoy Alcayaga. Como se vê,
seria complicadíssimo para algum leitor (ou pelo menos para a
maioria deles) memorizá-lo. Ademais, a devotada professorinha de
aldeia, com um talento do tamanho do mundo, religiosíssima (católica
fervorosa), adotou o pseudônimo até para distinguir as duas
atividades que exercia. Dizem que escolheu o Gabriela em homenagem ao
arcanjo Gabriel. E que o Mistral foi uma forma de reverenciar o poeta
catalão Francisco Mistral. Se é verdade ou não, não posso
garantir. Mas tem lógica.
Gabriela
Mistral, amicíssima de Cecília Meirelles, com quem guardava muitas
semelhanças, quer na forma de fazer poesia, quer no fervor pelo
magistério, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1945,
surpreendendo o mundo naquela oportunidade. Sou vidrado na sua obra,
de nítida influência mística.
Já
o nome de batismo de Pablo Neruda é Ricardo Eliecer Neftali Reyes
Basualto. Ou seja, tão comprido quanto o de Gabriela Mistral. Foi
diplomata e militante comunista, muito amigo do presidente chileno,
Salvador Allende, a cujo governo serviu. Morreu (oficialmente de
câncer de próstata) em 1973, doze dias depois que o general Augusto
Pinochet liderou o golpe de Estado que depôs seu amigo do poder.
A
causa da sua morte, porém, foi bastante contestada na época em que
ocorreu e continua sendo até hoje. O Partido Comunista Chileno
acusava e ainda acusa o oficial golpista de ser o responsável por
ela. Pinochet teria ordenado o envenenamento de Neruda. Seria,
portanto, mais um caso de assassinato da feroz ditadura chilena. A
Justiça do Chile acolheu, finalmente, essa denúncia, em 2 de junho
de 2011, determinando a abertura de investigação a respeito.
A
poesia de Neruda é mais variada, eclética e “universal” que a
de Gabriela Mistral. Seu Nobel de Literatura foi conquistado em 1971.
Poucos poetas se igualaram ou se igualam a ele em criatividade e
inspiração. Amo sua poesia, que não canso de reler e de me
deliciar com suas metáforas, em magníficos versos. Seguindo uma
prática de que nunca abri mão quando trato de poetas, pincei, em
meus arquivos, uma produção de Gabriela Mistral e outra de Pablo
Neruda para reproduzir neste espaço. Como as damas sempre têm
preferência, transcrevo, primeiro, os versos abaixo da genial
professorinha:
Hino
à árvore
Arvore
irmã que bem cravada
por
ganchos escuros ao solo
a
clara fronte levantaste
numa
sede intensa de céu.
Faz-me
piedoso para a escória
de
cujos limos me mantenho
sem
que se adormeça a memória
do
país azul de onde venho.
Tu
que anuncia ao viandante
a
graça de tua presença
com
ampla sobra refrescante
e
com o nimbo de tua essência;
faze
com que a minha presença
revele,
nos prados da vida,
dúlcida
e cálida influência
por
sobre as almas exercida.
Árvore
criadora dez vezes:
a
que tem fruto cor-de-rosa,
a
de madeira construtora,
a
de zéfiro perfumada,
a
de folhagem protetora,
a
de bálsamos suavizantes
e
a de resinas milagrosas
repleta
de pesados ramos
e
de gargantas melodiosas;
torna-me
doador opulento,
faze-me
como tu fecundo:
O
coração e o pensamento
me
sejam vastos como o mundo.
E
todas as atividades
não
cheguem nunca a fatigar-me;
as
magnas prodigalidades
surjam
em mim sem esgotar-me.
Árvore,
em que é tão sossegada
a
pulsação do existir,
e
vês meu alento a agitada
febre
do mundo consumir;
faze-me
sereno, sereno,
dessa
viril serenidade
que
deu aos mármores helenos
o
seu sopro de divindade.
Tu
que não és outra coisa
que
doce entranha de mulher,
pois
cada rama guarda airosa
em
cada leve ninho um ser,
dá-me
ramagem vasta e densa,
tanto
quanto hão de precisar
os
que no bosque humano imenso
não
tenham lenha para o lar.
Árvore
que onde se levante
teu
corpo cheio de vigor
assumes
invariavelmente
o
mesmo gesto protetor;
faze
que ao longo dos estágios
da
vida, do prazer, da dor,
minha
alma assuma um invariado
e
universal gesto de amor.
De
Pablo Neruda, selecionei o poema abaixo que, coincidentemente, também
reverencia a natureza, tão judiada hoje em dia, levando o mundo à
beira da catástrofe, ao risco de se tornar inabitável dadas as
mudanças climáticas ora em andamento:
Nos
Bosques, Perdido
Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro
E aos lábios, sedento, levante seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando,
um sino quebrado ou um coração partido.
Algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um gruto ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e úmida treva das folhas.
Porém ali, despertando dos sonhos do bosque,
o ramo de avelã cantou sob minha boca
E seu odor errante subiu para o meu entendimento
como se, repentinamente, estivessem me procurando as raízes
que abandonei, a terra perdida com minha infância,
e parei ferido pelo aroma errante.
Não o quero, amada.
Para que nada nos prenda
para que não nos una nada.
Nem a palavra que perfumou tua boca
nem o que não disseram as palavras.
Nem a festa de amor que não tivemos
nem teus soluços junto à janela...
Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro
E aos lábios, sedento, levante seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando,
um sino quebrado ou um coração partido.
Algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um gruto ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e úmida treva das folhas.
Porém ali, despertando dos sonhos do bosque,
o ramo de avelã cantou sob minha boca
E seu odor errante subiu para o meu entendimento
como se, repentinamente, estivessem me procurando as raízes
que abandonei, a terra perdida com minha infância,
e parei ferido pelo aroma errante.
Não o quero, amada.
Para que nada nos prenda
para que não nos una nada.
Nem a palavra que perfumou tua boca
nem o que não disseram as palavras.
Nem a festa de amor que não tivemos
nem teus soluços junto à janela...
Boa
leitura!
O
Editor.
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