quarta-feira, 20 de junho de 2018

Partindo - partindo? - Emanuel Medeiros Vieira


Partindo – partindo?


* Por Emanuel Medeiros Vieira


E no meio do inverno descobri que havia um verão invencível dentro de mim”.(Albert Camus).


Pipoca, pitanga, goiaba, jabuticaba, tainha, algodão-doce, o mercado da minha ilha mítica ao amanhecer, – e quem se lembra de uma fruta chamada “abricó” – ancestral (pelo menos, em relação aos condomínios que vieram depois).

Mamãe me leva – aquele domingo azul está aqui, “pula” dentro de mim – regata na Baía Sul, eu tinha sete anos, roupa de “marinheiro”.
 
Amor foi relíquia/museu privado/cheiro de mofo cupim que nada poupa, naftalina no guarda-roupa,fugaz, finito, fragmentado, paixão vira irmandade ou guerra civil doméstica resignação irrestrita, variado repertório – o da morte.

Não se enganem: nada de heroico ou napoleônico há na morte – frases de efeito das novelas, pensamentos melosos, nada – A morte é o Nada – dizia o Larry, agnóstico professor de Filosofia no Primeiro Ano do Curso Clássico – o cheiro é de álcool, suor, morfina, lençol com gotas de sangue – a veia, mais uma vez, está pronta para a agulha, e o soro não acaba nunca mais uma agulha na veia, o termômetro, o ruído da hora do almoço no e do jantar no hospital (sempre cedo), canja – “Está na hora do remédio”, comunica a enfermeira.

Está na hora de tudo, no câncer, alguns remédios têm efeitos colaterais difíceis – eu já sabia disso no dia do diagnóstico (30 de dezembro de 2014): deixam a vista embaralhada, nublada – e tantos outros (evite a tentação da autopiedade, da lamúria, do vitimismo) e, às vezes, vem uma espécie de cegueira – voz que disse “evite”, gritou com raiva: “Para que serviu a Operação Bandeirantes (OBAN) e o Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS)?

Eu queria dizer para a voz: naquela ocasião, eu só tinha 25 anos e, no dia da descoberta do tumor no pâncreas, com metástase no fígado, em três meses, eu faria 70. Só consegui dizer para dentro: cada luto é um luto. O fim do mundo é depois de amanhã chega um padre: “Todos os teus filhos foram batizados?”, ele pergunta, tenho dois enteados, um filho do coração e a minha filha – o do “coração” não foi.

Brinco: “Ainda bem que a Santa Madre acabou com o limbo”. PARA DENTRO, EU DISSE: NO AUGE DA DITADURA, EU TINHA MAIS FORÇA. Não falo só do corpo que segue a sua jornada, mas do Tempo, que desagrega e apodrece tudo. Eu estou voltando aos dias de outrora. Falo de um outro tipo de “cansaço” (desencanto, aporrinhação, tristeza?) – a fadiga de ver a ruína de um país e a decrepitude moral de tantas pessoas e – o que sonhei e não aconteceu. Não foi um “gibi”, uma festança a minha vida, na qual os velhacos e patifes são sempre punidos (antigas histórias infantis – eu sei, na vida não é assim).

Cuidado com o tom panfletário e piegas, adverte o promotor interno – Cansaço das coisas que sonhei – românticas? – e que nunca aconteceram. Você não entendeu”, proclama uma voz que não reconheço. Esse país sempre foi de poucos proprietários. Fiquei calado, o padre tinha outros pacientes para atender – era o capelão do hospital.

O senhor brinca e está morrendo” – ele havia me dito antes da despedida. Não quer se confessar?”, havia perguntado, e eu respondi: “Passei a minha vida me confessando...” Estou morrendo. Lembrei-me do mestre Machado de Assis, no seu romance “Quincas Borba”: “Ao vencido, ódio ou compaixão, ao vencedor, as batatas”.

Ao vencedor, as batatas!”, gritei. E as cinzas do Purgatório, padre?” (recordando-me do livro de Otto Maria Carpeaux – sem “as” – “Cinzas do Purgatório”. O senhor é um galhofeiro”, ele me diz – mas sorri. Antes de ser internado, implorei à família: nada de autoajuda, nada de milagres, nada de padre roqueiro, nada de consolos vãos – queria um pároco de aldeia, simples, anônimo, quem sabe, um missionário da Amazônia, nunca um sacerdote que adorasse aparecer no “Fantástico” ou em programas de auditório, como certos padres que camuflam (pensam que enganam) a vasta vaidade.

Não quero ficar ligado só por fios ou máquina ou vegetando em uma cama (mesmo “lúcido”) – Lúcido? Desliguem tudo!!! Desliguem tudo – deixei por escrito.

Pelos menos, perto da morte, me deixem ser plenamente sincero. Clarice, minha filha, que “trabalha” com a noção do Perdão, tem compaixão autêntica e é muito melhor do que o seu pai, pede que eu perdoe algumas pessoas antes de partir (está chegando a hora) – umas pústulas humanas, uns dejetos morais – que não perdoei
está na hora de perdoar? Há um momento para o perdão–perdão verdadeiro, visceral, não o de “mentirinha”, hipócrita, fácil de conceder (só de “boca”)?

Torturadores? Nunca terão o meu perdão. E nestas plagas da impunidade, eles nunca foram julgados e condenados. Esclareço: ela não apelou para que eu perdoasse torturadores. Se houver inferno, por justiça, eles precisam estar lá. Um diabinho ri. E o mundo que irias mudar?” Ele me olha, eu fico quieto, ele insiste: O mundo está justo e bom como querias?” 
Silêncio. E porque Ele permite tanto sofrimento para ti: tortura, infecção hospitalar, câncer bravo, dores tenebrosas? Continuo em silêncio – Nada de nada. Não me venham com a frase preferida: “O sofrimento é um mistério”.

O “sofrimento dói”, a dor física só humilha. Se Deus não estava nos campos de concentração nazistas, porque estaria preocupado em salvar um modesto ilhéu – esse pobre homem do Desterro – num hospital na primeira capital deste país de merda? Acho que não fui feliz em escrever “merda” – iria falar “injusto”, “desigual”, “obsceno”, “calhorda”etc., mas pareceria discurso parlamentar. Ele jogou fora o passaporte brasileiro. Sejamos sinceros: o bom Deus tinha razão.

Sim: estou morrendo – Por que repetir? A morte sempre ganha: tem mais tempo – Estou morrendo. O Passado é um País Estrangeiro. E uma enfermeira diz que seu horário começa às 7h00 e termina às 19h00 – e que ganha pouco.

Mesmo que esteja pensando em Bach e Mozart, não há alívio. Lembrei-me do que dizia mamãe: “Pegue essa cruz e me segue”, repetindo Jesus. Sim, minha mãe: eu a carreguei.

O Cristo dela não era o da prosperidade e dos enganadores, mas o da Compaixão Verdadeira, dos humilhados e ofendidos da Terra, dos “pequenos” – sempre pequenos. Papai parecia São Francisco – ele era da Ordem Terceira do amado santo. Mamãe seria a sua Clara.
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O padre diz que é bom ter o consolo do Céu. Já veio alguém de “lá” para contar? A vida não termina aqui” – Lembro-me de novo dos meus pais. (Confesso – sentimental que sou: queria que eles estivessem ao meu lado.)

Perdi no caminho, não só o cajado, o sapato, o cantil – e a Fé?Creio que tenho um pouco. Ou não? Ou será um álibi para suportar a dor? E o padre vai embora – Mas em homenagem aos meus pais, antes rezamos (de mãos dadas) o Pai Nosso.

Quero paz – a dor deixa-me intolerante, irritadiço. (E havia trazido “O Barco Embriagado” e outros poemas de Arthur Rimbaud, edição caindo aos pedaços, para tentar a tradução que queria fazer desde a faculdade, e que nunca terminei – as outras eram bem melhores.) A pimenta não está nos olhos de muitos que dizem confortar e despejam um caminhão de lugares-comuns, quando não, hipocrisia. Mas há os autênticos – amo-os;

É claro: não sei driblar a morte (ninguém sabe) – a “hora” chegará para todos. Escuto Mozart – mamãe frita uma tainha no fogão de lenha. Ouço também a “Quarta Sinfonia de Mahler” (Gustav Mahler –1860/1911) – que explode “como se a lua caísse no chão”, segundo o “mago–anjo” Mário Quintana.

Consigo sorrir. Sempre recebemos mais do que imaginávamos (na infância). É claro que valeu a pena.

(Salvador, novembro de 2017).


* Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros. Foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura de 2018.





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