A desobediência civil
*
Por Henry David Thoreau
Aceito com entusiasmo o lema
“O melhor governo é o que menos governa”; e gostaria que ele
fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas
consequências, este lema significa o seguinte, no que também creio:
“O melhor governo é o que não governa de modo algum”; e, quando
os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que
terão. O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um
artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma
inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser
inconveniente. As objeções que têm sido levantadas contra a
existência de um exército permanente, numerosas e substantivas, e
que merecem prevalecer, podem também, no fim das contas, servir para
protestar contra um governo permanente. O exército permanente é
apenas um braço do governo permanente. O próprio governo, que é
simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua
vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo
que o povo possa agir através dele. Prova disso é a atual guerra
contra o México, obra de um número relativamente pequeno de
indivíduos que usam o governo permanente como um instrumento
particular; isso porque o povo não teria consentido, de início, uma
iniciativa dessas.
Esse governo norte-americano —
que vem a ser ele senão uma tradição, ainda que recente,
tentando-se transmitir inteira à posteridade, mas que a cada
instante vai perdendo porções da sua integridade? Ele não tem a
força nem a vitalidade de um único homem vivo, pois um único homem
pode fazê-lo dobrar-se à sua vontade. O governo é uma espécie de
revólver brinquedo para o próprio povo; e ele certamente vai
quebrar se por acaso os norte-americanos o usarem seriamente uns
contra os outros, como uma arma de verdade. Mas nem por isso ele é
menos necessário; pois o povo precisa dispor de uma ou outra máquina
complicada e barulhenta para preencher a sua concepção de governo.
Desta forma, os governos são a prova de como os homens podem ter
sucesso no ato de oprimir em proveito próprio, não importando se a
opressão se volta também contra eles. Devemos admitir que ele é
excelente; no entanto, este governo em si mesmo nunca estimulou
qualquer iniciativa a não ser pela rapidez com que se dispôs a não
atrapalhar. Ele não mantém o país livre. Ele não povoa as terras
do oeste. Ele não educa. O caráter inerente do povo norte-americano
é o responsável por tudo o que temos conseguido fazer; e ele teria
conseguido fazer consideravelmente mais se o governo não tivesse
sido por vezes um obstáculo. Pois o governo é um artifício através
do qual os homens conseguiriam de bom grado deixar em paz uns aos
outros; e, como já foi dito, a sua conveniência máxima só ocorre
quando os governados são minimamente molestados pelos seus
governantes. Se não fossem feitos de borracha da Índia, os negócios
e o comércio nunca conseguiriam ultrapassar os obstáculos que os
legisladores teimam em plantar no seu caminho; e se fôssemos julgar
estes senhores levando em conta exclusivamente os efeitos dos seus
atos — esquecendo as suas intenções —, eles mereceriam a
classificação dada e as punições impostas a essas pessoas nocivas
que gostam de obstruir as ferrovias.
No entanto, quero me
pronunciar em termos práticos como cidadão, distintamente daqueles
que se chamam anti-governistas: o que desejo imediatamente é um
governo melhor, e não o fim do governo. Se cada homem expressar o
tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais
próximos de conseguir formá-lo.
No final das contas, o motivo
prático pelo qual se permite o governo da maioria e a sua
continuidade — uma vez passado o poder para as mãos do povo —
não é a sua maior tendência a emitir bons juízos, nem porque
possa parecer o mais justo aos olhos da minoria, mas sim porque ela
(a maioria) é fisicamente a mais forte. Mas um governo no qual
prevalece o mando da maioria em todas as questões não pode ser
baseado na justiça, mesmo nos limites da avaliação dos homens. Não
será possível um governo em que a maioria não decida virtualmente
o que é certo ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas
questões às quais seja aplicável a norma da conveniência? Deve o
cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante
ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então
estará cada homem dotado de uma consciência? Na minha opinião
devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é
desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível
do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de
assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo.
Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem
consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma
corporação com consciência. A lei nunca fez os homens sequer um
pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até
mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da
injustiça. Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela
lei é a visão de uma coluna de soldados — coronel, capitão,
cabos, combatentes e outros — marchando para a guerra numa ordem
impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como
sempre contra o seu senso comum e a sua consciência; por isso essa
marcha é muito pesada e faz o coração bater forte. Eles sabem
perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa maldita; eles têm
tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser
homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum
inescrupuloso detentor do poder? É só visitar o Estaleiro Naval e
contemplar um fuzileiro: eis aí o tipo de homem que um governo
norte-americano é capaz de fabricar — ou transformar com a sua
magia negra —, uma sombra pálida, uma vaga recordação da
condição humana, um cadáver de pé e vivo que, no entanto, se
poderia considerar enterrado sob armas com acompanhamento fúnebre,
embora possa acontecer que “Não se ouviu um rufar nem sequer um
toque de silêncio enquanto à muralha o seu corpo levamos nenhum
soldado disparou uma salva de adeus sobre o túmulo onde jaze o herói
que enterramos”. (...)
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Todos reconhecem o direito à
revolução, ou seja, o direito de negar lealdade e de oferecer
resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis
a sua tirania e ineficiência. No entanto, quase todos dizem que tal
não acontece agora. Consideram, porém, que isso aconteceu em 1775.
Se alguém me dissesse que o nosso governo é mão porque estabeleceu
certas taxas sobre bens estrangeiros que chegam aos seus portos, o
mais provável é que eu não criasse qualquer caso, pois posso muito
bem passar sem eles: todas as máquinas têm atrito e talvez isso
faça com que o bom e o mau se compensem. De qualquer forma, fazer um
rebuliço por causa disso é um grande mal. Mas quando o próprio
atrito chega a construir a máquina e vemos a organização da
tirania e do roubo, afirmo que devemos repudiar essa máquina. Em
outras palavras, quando um sexto da população de um país que se
elegeu como o refúgio da liberdade é composto de escravos, e quando
todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um exército
estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo
demais para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse
dever é tão mais urgente pelo fato de que o país assaltado não é
o nosso, e pior ainda, que o exército invasor é o nosso.
William Paley, uma autoridade
em assuntos morais, tem um capítulo intitulado Duty of submission
to civil government (O dever de submissão ao governo civil), no
qual soluciona toda a questão das obrigações políticas pela
fórmula da conveniência; e diz: “Enquanto o exigir o interesse de
toda a sociedade, ou seja, enquanto não se possa resistir ao governo
estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência pública, é a vontade
de Deus que tal governo seja obedecido — e nem um dia além disso.
Admitindo-se este princípio, a justiça de cada acto particular de
resistência reduz-se à computação do volume de perigo e
protestos, de um lado, e da probabilidade e custos da reparação, de
outro”. Diz ele que cada um julgará esta questão por si mesmo.
Mas parece que Paley nunca levou em conta os casos em que a regra da
conveniência não se aplica, nos quais um povo ou um indivíduo tem
que fazer justiça a qualquer custo. Se arranquei injustamente a
tábua que é a salvação de um homem que se afoga, sou obrigado a
devolvê-la, ainda que eu mesmo me afogue. De acordo com Paley, esta
é uma circunstância inconveniente. Mas quem quiser se salvar desta
forma acabará perdendo a vida. O povo norte-americano tem que pôr
fim à escravidão e tem que parar de guerrear com o México, mesmo
que isso lhe custe a existência enquanto povo. As nações, na sua
prática, concordam com Paley, mas haverá quem considere que
Massachusetts esteja agir corretamente na crise atual?
“Uma rameira de alta
linhagem, um trapo de pano prateado atirado à lama, Levanta a cauda
do vestido, e arrasta no chão a sua alma”
Em termos práticos, os que se
opõem à abolição em Massachusetts não são uns cem mil políticos
do sul, mas uns cem mil comerciantes e fazendeiros daqui, que se
interessam mais pelos negócios e pela agricultura do que pela
humanidade e que não estão dispostos a fazer justiça ao escravo e
ao México, custe o que custar. Não discuto com inimigos distantes,
mas com aqueles que, bem perto de mim, cooperam com a posição de
homens que estão longe daqui e defendem-na; estes últimos homens
seriam inofensivos se não fosse por aqueles. Estamos acostumados a
afirmar que os homens em geral são despreparados; mas as melhorias
são lentas, porque os poucos não são substantivamente mais sábios
ou melhores do que os muitos. Não é tão importante que muitos
sejam tão bons quanto você, e sim que haja em algum lugar alguma
porção absoluta de virtude; isso bastará para fermentar toda a
massa. Há milhares de pessoas cuja opinião é contrária à
escravidão e à guerra; apesar disso, nada fazem de efetivo para pôr
fim a ambas; dizem-se filhos de Washington e Franklin, mas ficam
sentados com as mãos nos bolsos, dizendo não saber o que pode ser
feito e nada fazendo; chegam a colocar a questão do livre comércio
à frente da questão da liberdade, e ficam quietos lendo as cotações
do dia junto com os últimos boletins militares sobre a campanha do
México; é possível até que acabem por adormecer durante a
leitura. Qual é hoje a cotação do dia de um homem honesto e
patriota? Eles hesitam, arrependem-se e às vezes assinam petições,
mas nada fazem de sério ou de efetivo. Com muito boa disposição,
preferem esperar que outros remedeiem o mal, de forma que nada reste
para motivar o seu arrependimento. No melhor dos casos, nada mais
farão do que depositar na urna um voto insignificante, cumprimentar
timidamente a atitude certa e, de passagem, desejar-lhe boa sorte. Há
novecentos e noventa e nove patronos da virtude e apenas um homem
virtuoso; mas é mais fácil lidar com o verdadeiro dono de algo do
que com seu guardião temporário.
Toda a votação é um tipo de
jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve coloração moral, onde
se brinca com o certo e o errado sobre questões morais; e é claro
que há apostas neste jogo. O caráter dos eleitores não entra nas
avaliações. Proclamo o meu voto — talvez — de acordo com meu
critério moral; mas não tenho um interesse vital de que o certo
saia vitorioso. Estou disposto a deixar essa decisão para a maioria.
O compromisso de votar, desta forma, nunca vai mais longe do que as
conveniências. Nem mesmo o ato de votar pelo que é certo implica
fazer algo pelo que é certo. É apenas uma forma de expressar
publicamente o meu anêmico desejo de que o certo venha a prevalecer.
Um homem sábio não deixará o que é certo nas mãos incertas do
acaso e nem esperará que a sua vitória se dê através da força da
maioria. Há escassa virtude nas ações de massa dos homens. Quando
finalmente a maioria votar a favor da abolição da escravatura, das
duas uma: ou ela será indiferente à escravidão ou então restará
muito pouca escravidão a ser abolida pelo o seu voto. A essa altura,
os únicos escravos serão eles, os integrantes da maioria. O único
voto que pode apressar a abolição da escravatura é o daquele homem
que afirma a própria liberdade através do seu voto.
Estou informado de que haverá
em Baltimore, ou em outro lugar qualquer, uma convenção para
escolher um candidato à presidência; essa convenção é composta
principalmente por editores de jornais e políticos profissionais;
mas que importância terá a possível decisão desta reunião para
um homem independente, inteligente e respeitável? No fim das contas,
ainda poderemos contar com as vantagens da sua sabedoria e da sua
honestidade, não é mesmo? Será que não poderemos prever alguns
votos independentes? Não haverá muitas pessoas neste país que não
freqüentam convenções? Mas não é isso o que ocorre: percebo que
o homem considerado respeitável logo abandona a sua posição e
passa a não ter mais esperanças no seu país, quando o mais certo
seria que seu país desesperasse dele. A partir disso ele adere a um
dos candidatos assim selecionados por ser o único disponível,
apenas para provar que ele mesmo está disponível para todos os
planos do demagogo. O voto de um homem desses não vale mais do que o
voto eventualmente comprado de um estrangeiro inescrupuloso ou do
nativo venal. Oh! É preciso um homem que seja um homem e que tenha,
como diz um vizinho meu, uma coluna dorsal que não se dobre aos
poderosos! As nossas estatísticas estão erradas: contou-se gente
demais. Quantos homens existem em cada mil milhas quadradas deste
país? Dificilmente se contará um. A América oferece ou não
incentivos para a imigração de homens? Os homens norte-americanos
foram rareando até à dimensão de uma irmandade secreta como a dos
Odd Fellows, cujo integrante típico pode ser identificado pelo seu
descomunal caráter gregário, pela manifesta falta de inteligência
e de jovial autoconfiança; a sua preocupação primeira e maior ao
dar entrada neste mundo é a de verificar se os asilos estão em boas
condições de funcionamento; antes mesmo de ter direito a envergar
roupas de adulto ele organiza uma coleta de fundos para as viúvas e
órfãos que porventura existam; em poucas palavras, é um homem que
só ousa viver com a ajuda da Companhia de Seguros Mútuos, que lhe
prometeu um enterro decente.
De fato, nenhum homem tem o
dever de se dedicar à erradicação de qualquer mal, mesmo o maior
dos males; ele pode muito bem ter outras preocupações que o
mobilizem. Mas ele tem no mínimo a obrigação de lavar as mãos
frente à questão e, no caso de não mais se ocupar dela, de não
dar qualquer apoio prático à injustiça. Se me dedico a outras
metas e considerações, preciso ao menos verificar se não estou
fazendo isso à custa de alguém em cujos ombros esteja sentado. É
preciso que eu saia de cima dele para que ele também possa estar
livre para fazer as suas considerações. Vejam como se tolera uma
inconsistência das mais grosseiras. Já ouvi alguns dos meus
conterrâneos dizerem: “Queria que eles me convocassem para ir
combater um levante de escravos ou para atacar o México — pois eu
não iria”; no entanto, cada um destes homens possibilitou o envio
de um substituto, fazendo isso diretamente pela sua fidelidade ao
governo, ou pelo menos indiretamente através do seu dinheiro. O
soldado que se recusa a participar de uma guerra injusta é aplaudido
por aqueles que não recusam apoio ao governo injusto que faz a
guerra; é aplaudido por aqueles cuja ação e autoridade ele
despreza e desvaloriza; tudo funciona como se o Estado estivesse
suficientemente arrependido para contratar um crítico dos seus
pecados, mas insuficientemente arrependido para interromper por um
instante sequer os seus atos pecaminosos. Estamos todos, desta forma,
de conformidade com a ordem e o governo civil, reunidos para
homenagear e dar apoio à nossa própria crueldade. Se ruborizamos
ante o nosso primeiro pecado, logo depois se instala a indiferença.
Passamos do imoral ao não-moral, e isso não é tão desnecessário
assim para o tipo de vida que construímos.
O mais amplo e comum dos erros
exige a virtude mais generosa para se manter. São os nobres os mais
passíveis de proferir os moderados ataques a que comumente está
sujeita a virtude do patriotismo. Sem dúvida, os maiores baluartes
conscienciosos do governo, e muito frequentemente os maiores
opositores das reformas, são aqueles que desaprovam o caráter e as
medidas de um governo, sem no entanto lhe retirar a sua lealdade e
apoio. Há gente coletando assinaturas para fazer petições ao
Estado de Massachusetts no sentido de dissolver a União e de
desprezar as recomendações do presidente. Ora, por que eles mesmos
não dissolvem essa união entre eles e o Estado e se recusam a pagar
a sua cota de impostos? Não estão eles na mesma relação com o
Estado que a que este mantém com a União? E não são as mesmas as
razões que evitaram a resistência do Estado à União e a
resistência deles ao Estado?
Como pode um homem se
satisfazer com a mera posse de uma opinião e de fato usufruí-la?
Pode haver algum usufruto da opinião quando o dono dela a vê
ofendida? Se o seu vizinho o vigariza e lhe subtrai um mero dólar,
você não se satisfaz com a descoberta da vigarice, com a
proclamação de que foi vigarizado e nem mesmo com as suas gestões
no sentido de ser devidamente reembolsado; o que você faz é tomar
medidas efetivas e imediatas para ter o seu dinheiro de volta e
cuidar de nunca mais ser enganado. Ações baseadas em princípios —
a percepção e a execução do que é certo — modificam coisas e
relações; a ação deste gênero é essencialmente revolucionária
e não se reduz integralmente a qualquer coisa preexistente. Ela
cinde não apenas Estados e Igrejas; divide famílias; e também
divide o indivíduo» separando nele o diabólico do divino.
Existem leis injustas; devemos
submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e
obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las
imediatamente? Numa sociedade com um governo como o nosso, os homens
em geral pensam que devem esperar até que tenham convencido a
maioria a alterar essas leis. A sua opinião é de que a hipótese da
resistência pode vir a ser um remédio pior do que o mal a ser
combatido. Mas é precisamente o governo o culpado pela circunstância
de o remédio ser de fato pior do que o mal. É o governo que faz
tudo ficar pior. Por que o governo não é mais capaz e se antecipa
para lutar pela reforma? Por que ele não sabe valorizar a sua sábia
minoria? Por que ele chora e resiste antes de ser atacado? Por que
ele não estimula a participação ativa dos cidadãos para que eles
lhe mostrem as suas falhas e para conseguir um desempenho melhor do
que eles lhe exigem? Por que eles lhe exigem? Por que ele sempre
crucifica Jesus Cristo, e excomunga Copérnico e Lutero e qualifica
Washington e Franklin de rebeldes?
Não é absurdo pensar que o
único tipo de transgressão que o governo nunca previu foi a negação
deliberada e prática de sua autoridade; se não fosse assim, por que
então não teria ele estabelecido a penalidade clara, cabível e
proporcional? Se um homem sem propriedade se recusa pela primeira vez
a recolher nove xelins aos cofres do Estado, é preso por prazo cujo
limite não é estabelecido por qualquer lei que eu conheça; esse
prazo é determinado exclusivamente pelo arbítrio dos que o enviam à
prisão. Mas se ele resolver roubar noventa vezes nove xelins do
Estado, em breve estará novamente em liberdade.
Se a injustiça é parte do
inevitável atrito no funcionamento da máquina governamental, que
seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o desgaste —
certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma
peça dotada de uma mola exclusiva — ou roldana, ou corda, ou
manivela —, aí então talvez seja válido julgar se o remédio não
será pior do que o mal; mas se ela for de tal natureza que exija que
você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então, que
se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a
máquina. O que preciso fazer é cuidar para que de modo algum eu
participe das misérias que condeno. (...)
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Especulei sobre a prisão do
infrator, e não sobre o confisco dos seus bens — embora ambas as
medidas sirvam ao mesmo fim —, porque os que afirmam o certo e que,
por isso, são os seres mais perigosos para um Estado corrupto, em
geral não gastam muito do seu tempo na acumulação de propriedades.
Para homens assim o Estado presta serviços relativamente pequenos e
um imposto bem leve tende a ser considerado exorbitante,
particularmente quando são obrigados a realizar um trabalho especial
para conseguir a quantia cobrada. Se houvesse quem vivesse
inteiramente sem usar o dinheiro, o próprio Estado hesitaria em
exigir que ele lhe entregasse uma quantia. O homem rico, no entanto —
e não pretendo estabelecer uma comparação invejosa —, é sempre
um ser vendido à instituição que o enriquece. Falando em termos
absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro
interpõe-se entre um homem e os seus objetivos e permite que ele os
compre; obter alguma coisa dessa forma não é uma grande virtude. O
dinheiro acalma muitas perguntas que de outra forma ele se veria
pressionado a fazer; de outro lado, a única pergunta nova que o
dinheiro suscita é difícil, embora supérflua: “Como gasta-lo?”
Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade. As
oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acúmulo daquilo
que se chama de “meios”. A melhor coisa a ser feita em prol da
cultura do seu tempo por um homem rico é realizar os planos que
tinha quando ainda era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de
Herodes de acordo com a situação deles. “Mostrem-me o dinheiro
dos tributos”, disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda.
Disse então Jesus Cristo: “Se vocês usam o dinheiro com a imagem
de César, dinheiro que ele colocou em circulação e ao qual ele deu
valor, ou seja, se vocês são homens do Estado e estão felizes de
se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no
por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a César o que é de
César, e a Deus o que é de Deus”; Cristo não lhes disse nada
sobre como distinguir um do outro; eles não queriam saber isso.
Quando converso com os mais
livres dentre os meus vizinhos, percebo que, independentemente do que
digam a respeito da grandeza e da seriedade do problema e de sua
preocupação com a tranqüilidade pública, no fim das contas tudo
se reduz ao seguinte: eles não podem abrir mão da proteção do
governo atual e temem as conseqüências que a sua rebeldia
provocaria nas suas propriedades e famílias. Da minha parte, não
gosto de imaginar que possa vir algum dia a depender da proteção do
Estado. Mas se eu negar a autoridade do Estado quando ele apresenta a
minha conta de impostos, ele logo confiscará e dissipará a minha
propriedade e tratará de me hostilizar e à minha família para
sempre. Essa é uma perspectiva muito dura. Isso torna impossível
uma vida que seja simultaneamente honesta e confortável em aspectos
exteriores. Não valeria a pena acumular propriedade; ela certamente
se perderia de novo. O que se tem a fazer é arrendar alguns
alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e
consumir logo toda a sua produção. Você tem que viver dentro de si
mesmo e depender de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para
recomeçar; você não deve desenvolver muitos vínculos. Até mesmo
na Turquia você pode ficar rico, se em tudo for um bom súdito do
governo turco. Confúcio disse: «Se um Estado é governado pelos
princípios da razão, a pobreza e a miséria são fatos
acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios da
razão, a riqueza e as honrarias são os fatos acabrunhantes”. Não!
Até que eu solicite um remoto porto sulino, que a proteção do
Estado de Massachusetts me seja estendida com o fim de preservar a
minha liberdade, ou até que eu me dedique apenas a construir
pacificamente um patrimônio aqui no meu Estado, posso negar a minha
lealdade ao governo local e negar o seu direito à minha propriedade
e à minha vida. Sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a
penalidade pela desobediência do que obedecer. Obedecer faria com
que eu me sentisse diminuído.
Há alguns anos o Estado
procurou-me em nome de uma organização religiosa e intimou-me a
pagar uma certa quantia destinada a sustentar um pregador que o meu
pai costumava freqüentar; eu nunca o tinha visto. “Pague ou será
trancado na cadeia”, disse o Estado. Eu recusei-me a pagar.
Infelizmente, no entanto, outro homem achou melhor fazer o pagamento
em meu nome. Não consegui descobrir por que o mestre-escola deveria
pagar imposto para sustentar o clérigo e não o clérigo contribuir
para o sustento do mestre-escola; pois eu não era mestre-escola do
Estado, e sustentava-me com subscrições voluntárias. Não vi o
motivo pelo qual o liceu não devesse apresentar a sua conta de
impostos e fazer com que o Estado apoiasse, junto com a organização
religiosa, essa sua pretensão. No entanto, os conselheiros
municipais pediram-me e eu concordei em fazer uma declaração por
escrito cuja redação ficou mais ou menos assim: “Saibam todos
quantos esta declaração lerem que eu, Henry Thoreau, não desejo
ser considerado integrante de qualquer sociedade organizada à qual
não tenha aderido”. Entreguei o texto ao secretário da
municipalidade. Deve estar com ele até hoje. Sabendo portanto que eu
não queria ser considerado membro daquela organização religiosa, o
Estado nunca mais me fez uma exigência parecida; ele considerava, no
entanto, que estava certo e que deveria continuar a operar a partir
dos pressupostos originais com que me abordou. Se fosse possível
saber os seus nomes, eu teria desligado-me minuciosamente, na mesma
ocasião, de todas as organizações das quais não era membro; mas
não soube onde encontrar uma lista completa delas.
Há seis anos que não pago o
imposto per capita. Fui encarcerado certa vez por causa disso, e
passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui observando as
paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta
de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que
dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a
idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse apenas
carne e sangue e ossos a serem trancafiados. Fiquei especulando que
ela devia ter concluído, finalmente, que aquela era a melhor forma
de me usar e, também, que ela jamais cogitara de se aproveitar dos
meus serviços de alguma outra maneira. Vi que apesar da grossa
parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma
muralha muito mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão
livres quanto eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes
pareceram-me um desperdício descomunal de pedras e argamassa. O meu
sentimento era de que eu tinha sido o único dos meus concidadãos a
pagar o imposto. Estava claro que eles não sabiam como lidar comigo
e que se comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro
crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que o
meu maior desejo era o de estar do outro lado daquela parede de
pedra. Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que
fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões — que os
acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo
estava de fato contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance,
resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de
enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chuto
no cachorro do seu desafeto. Percebi que o Estado era um idiota,
tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de
distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que
ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.
Portanto, o Estado nunca
confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de um
homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos. Ele não é dotado
de gênio superior ou de honestidade, apenas de mais força física.
Eu não nasci para ser coagido. Quero respirar da forma que eu mesmo
escolher. Veremos quem é mais forte. Que força tem uma multidão?
Os únicos que podem me coagir são os que obedecem a uma lei mais
alta do que a minha. Eles obrigam-me a ser como eles. Nunca ouvi
falar de homens que tenham sido obrigados por multidões a viver
desta ou daquela forma. Que tipo de vida seria essa? Quando defronto
um governo que me diz “A bolsa ou a vida!”, por que deveria
apressar-me em lhe entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja
passando por um grande aperto, sem saber o que fazer. Não posso
ajudá-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como eu ajo. Não
vale a pena choramingar sobre o assunto. Não sou individualmente
responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não
sou o filho do maquinista. No meu modo de ver quando sementes de
carvalho e de castanheira caem lado a lado, uma delas não se retrai
para dar vez à outra; pelo contrário, cada uma segue as suas
próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor maneira
possível, até que uma por acaso acaba superando e destruindo a
outra. Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza,
então ela morre; o mesmo acontece com um homem.
A noite que passei na prisão,
além de uma novidade, foi também bem interessante. Os prisioneiros,
em mangas de camisa, distraíam-se conversando na entrada,
aproveitando o vento fresco da noite; assim estavam quando me viram
chegar. Mas o carcereiro disse-lhes: “Venham, rapazes, já é hora
de trancar as portas”; ouvi o barulho dos seus passos enquanto
caminhavam para os seus compartimentos vazios. O carcereiro
apresentou-me o meu companheiro de cela, qualificando-o como “um
sujeito de primeira e um homem esperto”. Trancada a porta, ele
mostrou-me o cabide onde deveria pendurar o meu chapéu e explicou-me
como administrava as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez
por mês; a nossa cela, pelo menos, era o apartamento mais branco, de
mobiliário mais simples e provavelmente o mais limpo de toda a
cidade. Naturalmente ele quis saber de onde eu vinha e por que eu
tinha ido parar ali; quando lhe contei a minha história, foi minha a
vez de lhe perguntar a sua, na suposição evidente de que ele era um
homem honesto; e, da maneira que as coisas estão, acredito que ele
de fato era um homem honesto. Ele disse: «Ora, acusam-me de ter
incendiado um celeiro; mas não fui eu”. Pelo que pude perceber,
ele provavelmente fora deitar-se, bêbado, para dormir num celeiro,
não sem antes fumar o seu cachimbo; e assim perdeu-se no fogo um
celeiro. Ele tinha a fama de ser um homem esperto, e ali aguardava
havia três meses o seu julgamento; tinha outros três meses a
esperar ainda; mas estava bem cordato e contente, já que não pagava
pela casa e comida e se considerava bem tratado.
Ele ficava ao lado de uma
janela, e eu junto à outra; percebi que se alguém ficasse por ali
por muito tempo acabaria tendo por atividade principal olhar pela
janela. Em pouco tempo eu tinha lido os folhetos que encontrara, e
fiquei observando os locais por onde antigos prisioneiros tinham
fugido, vi onde uma grade tinha sido serrada e ouvi a história de
vários hóspedes anteriores daquele aposento; pois acabei
descobrindo que até mesmo ali circulavam histórias e tagarelices
que não conseguem atravessar as paredes da cadeia. Essa é
provavelmente a única casa na cidade onde se escrevem poesias que
são publicadas em forma de circular, mas que não chegam a virar
livros. Mostraram-me uma grande quantidade de poesias feitas por
alguns jovens cuja tentativa de fuga tinha sido frustrada; eles
vingavam-se declamando os seus versos.
Tirei tudo o que pude do meu
companheiro de cela, pois temia nunca mais tornar a encontrá-lo; mas
finalmente ele indicou-me a minha cama e deixou para mim a tarefa de
apagar a lamparina. Ficar ali deitado por uma única noite foi como
viajar a um país distante, um país que eu nunca teria imaginado
visitar. Pareceu-me que nunca antes ouvira o relógio da cidade dar
as horas ou os ruídos noturnos da aldeia; isso porque dormíamos com
as janelas abertas, janelas estas instaladas por dentro das grades.
Era como contemplar a minha aldeia natal à luz da Idade Média, e o
nosso familiar rio Concord transformou-se na torrente de um Reno; à
minha frente desfilaram visões de cavaleiros e castelos. As vozes
que ouvia nas ruas eram dos antigos burgueses. Fui espectador e
testemunha involuntária de tudo o que se fazia e dizia na cozinha da
vizinha hospedaria local — uma experiência inteiramente nova e
rara para mim. Tive uma visão bem mais íntima da minha cidade
natal. Eu estava razoavelmente perto da sua alma. Nunca antes vira as
suas instituições. Essa cadeia é uma das suas instituições
peculiares, pois Concord é a sede do condado. Comecei a compreender
o que preocupa os seus habitantes.
Quando chegou a manhã, o
nosso desjejum foi empurrado para dentro da cela através de um
buraco na porta; era servido numa vasilha de estanho ajustada ao
tamanho do buraco e consistia numa porção de chocolate com pão
preto; junto vinha uma colher de ferro. Quando do lado de fora
pediram a devolução das vasilhas, a minha inexperiência foi tanta
que coloquei de volta o pão que não comera; mas o meu com panheiro
pegou o pão e aconselhou-me a guardá-lo para o almoço ou para o
jantar. Pouco depois, deixaram que ele saísse para trabalhar num
campo de feno das vizinhanças, para onde se deslocava todos os dias;
não voltaria antes do meio-dia; ele então deu-me bom-dia e disse
que duvidava que nos víssemos de novo.
Quando saí da prisão —
pois alguém interferiu e pagou o meu imposto —, percebi
diferenças, não as grandes mudanças no dia-a-dia notadas por
aqueles aprisionados ainda jovens e devolvidos já trôpegos e
grisalhos. Ainda assim uma nova perspectiva tinha-se instalado no meu
modo de ver a cidade, o Estado e o país, representando uma mudança
maior do que se fosse causada pela mera passagem do tempo. Vi com
clareza ainda maior o Estado que habitava. Vi até que ponto podia
confiar nos meus conterrâneos como bons vizinhos e amigos; e percebi
que a sua amizade era apenas para os momentos de tranqüilidade;
senti que eles não têm grandes intenções de proceder
corretamente; descobri que, tal como os chineses e malaios, eles
formam uma raça diferente da minha, por causa dos seus preconceitos
e superstições; constatei que eles não arriscam a si mesmos ou a
sua propriedade nos seus atos de sacrifício pela humanidade; vi que,
no fim das contas, eles não são tão nobres a ponto de conseguir
tratar o ladrão de forma diferente do que este os trata; e que só
querem salvar as suas almas, através de ações de efeito, de
algumas orações e da eventual observação dos limites
particularmente estreitos e inúteis de um caminho de retidão. É
possível que esteja proferindo um julgamento duro sobre os meus
vizinhos, pois acredito que a maioria deles não sabe que existe na
sua cidade uma instituição tal como a cadeia. (...)
@@@
Para os que não conhecem as
fontes mais puras da verdade, que não querem subir mais pela sua
correnteza, a opção — sábia — é interromper a sua busca na
Bíblia e na Constituição; será aí que eles a sorverão, com
reverência e humildade; mas para aqueles que conseguem perceber que
a verdade vem mais de cima e alimenta esse lago ou aquele remanso, é
preciso preparar de novo o corpo para continuar a peregrinação, até
chegar à nascente.
Ainda não surgiu um homem
dotado de gênio para legislar no nosso país. Homens assim são
raros na história mundial. Oradores, políticos e homens eloqüentes
existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do orador
capaz de solucionar as complexas questões do dia-a-dia. Amamos a
eloqüência pelos seus méritos próprios, e não pela sua
capacidade de pronunciar uma verdade qualquer, nem pela possibilidade
de inspirar algum heroísmo. Os nossos legisladores ainda não
aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à
liberdade, à união e à retidão. Eles não têm gênio
ou talento nem para as questões relativamente simplórias dos
impostos, das finanças, do comércio e da indústria, da
agricultura. A América do Norte não conseguiria manter por muito
tempo a sua posição entre as nações se fôssemos abandonados à
esperteza palavrosa dos congressistas; felizmente contamos com a
experiência madura e com os protestos efetivos do nosso povo. Talvez
não tenha o direito de afirmar isto, mas o Novo Testamento foi
escrito há mil e oitocentos anos; no entanto onde encontrar o
legislador suficientemente sábio e prático para se aproveitar de
tudo o que esse texto ensina sobre a ciência da legislação?
A autoridade do governo, mesmo
do governo ao qual estou disposto a me submeter — pois obedecerei
com satisfação aos que saibam e façam melhor do que eu e, sob
certos aspectos, obedecerei até aos que não saibam nem façam as
coisas tão bem —, é ainda impura; para ser inteiramente justa,
ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos
governados. Ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens
qualquer direito puro além do que eu lhe concedo. O progresso de uma
monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e
desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro
respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a
conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de
construir governos? Não será possível dar um passo a mais no
sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá
um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a
reconhecer no indivíduo um poder maior e independente — do qual a
organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria
autoridade — e até que o indivíduo venha a receber um tratamento
correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa
enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o
indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que
sequer consideraria um perigo à sua tranqüilidade a existência de
alguns poucos homens que vivessem à parte dele, sem nele se
intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhassem todos
os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um Estado que produzisse
esta espécie de fruto, e que estivesse disposto a deixá-lo cair
logo que amadurecesse, abriria caminho para um Estado ainda mais
perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar um Estado desses, mas
nunca o encontrei em qualquer lugar.
* Escritor,
poeta, naturalista, ativista anti impostos, crítico da ideia de
desenvolvimento, pesquisador, historiador, filósofo e
transcendentalista.
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