quinta-feira, 21 de junho de 2018

Quando a biografia se impõe - Pedro J. Bondaczuk


Quando a biografia se impõe


* Por Pedro J. Bondaczuk


Quais os critérios adotados pelos escritores ao se disporem a redigir a biografia de alguma personalidade? Se você fosse biografar alguém, hoje, quem biografaria? Por que? Por ser contratado pela família para fazer isso? Por dinheiro apenas? Eu não faria essa opção. Não, pelo menos, por esse motivo.

O primeiro critério para escolher alguém a ser biografado, sem dúvida (pelo menos dos escritores sérios e que respeitam a inteligência dos seus leitores), é o fato dele ser figura conhecida (para o bem ou para o mal). Ninguém se propõe a biografar quem seja obscuro e não tenha se destacado em nenhum aspecto ao longo da sua vida.

Ou seja, para ser biografado, antes de tudo, o sujeito deve ser uma “personalidade”. A menos que se trate de alguma (rara) figura exemplar, que mesmo havendo feito coisas extraordinárias, haja sido injustiçada e permanecido na obscuridade. Claro que este não é o único critério, mas é o principal.

Há praticamente consenso, hoje em dia, entre os amantes de literatura, sobre a relevância de Franz Kafka para as letras não somente europeias, mas mundiais. Mesmo os que não gostem dele, ou não tenham lido nada do que escreveu, ou só tenham ouvido falar dele de passagem, admitem sua importância.

É personalidade, mesmo passados quase 88 anos da sua morte. Portanto, é um sujeito que tem tudo para ser biografado. E foi. Só que, jamais, por algum escritor da sua pátria de nascimento, a atual República Checa. É aquela velha história do “santo de casa”, que por mais venerado que seja, para os que convivem com ele, “não faz milagres”.

Agora essa omissão foi sanada. O filólogo checo, Josep Cernak, lançou, hás algum tempo, em Praga, do livro “A luta por escrever: sobre o compromisso vital de Franz Kafka”. Trata-se de meticulosa biografia do autor de “O processo” (entre tantos outros livros, vendidos aos borbotões mundo afora, mas que morreu na miséria, vítima de tuberculose, em Viena, em 1924).

Finalmente, foi feita justiça na República Checa ao que foi, provavelmente, seu escritor mais importante em todos os tempos mas que, dadas determinadas circunstâncias, é pouco conhecido, praticamente um estranho, em seu país natal.

Quando Kafka nasceu, é bom que se frise, não existia, ainda, sequer o quer viria a se transformar na federação da Checoslováquia. Seu território pertencia ao Império Austro-Húngaro. Ademais, o célebre escritor tinha outro complicador, que fazia com que fosse, digamos, “impermeável” aos conterrâneos: só escrevia em alemão, idioma falado em boa parte da comunidade judia de Praga, a que pertencia, e onde nasceu.

Há quem diga que ele não entendia o checo. Cermak discorda. E argumenta: “Afinal, foi capaz de apreciar a qualidade literária de um autor como Vladislav Vancura, que tem uma linguagem muito peculiar, muito bela, mas deformada”.

O novo biógrafo de Kafka colheu informações em fonte sumamente confiável (não que as dos outros não fossem): a sobrinha do escritor, Vera Saudkova, que na época ainda estava viva e lúcida, aos 88 anos de idade, que residia em Praga.

O que não se entende é o fato da sua obra haver sido proibida na então Checoslováquia ao longo de todo o regime comunista, portanto por quase meio século, a pretexto de ser “sumamente reacionária”. Os tempos, contudo (felizmente) mudaram. A federação se separou e surgiram a Eslováquia e a República Checa. E nesta última, que a rigor seria sua verdadeira pátria de origem, os livros de Kafka despertam, atualmente, verdadeira “febre”. E não somente sua obra, mas também sua memória. Há inúmeras estátuas dele pela cidade de Praga, além de um museu, de uma rua e de uma avenida com seu nome. Antes tarde, do que nunca.

Ainda assim, como reconhece Markata Malisova, diretora da Sociedade Franz Kafka, “sua obra é mais conhecida fora do que dentro do país”. O autor de “O processo” teve inúmeros biógrafos, a maioria alemães, como foi o caso de Klaus Wagenbach, por exemplo. O primeiro a biografá-lo foi seu amigo mais fiel, uma espécie de “irmão espiritual”, Max Brod, que administrou seu legado até morrer, em 1968, em Israel, para onde havia emigrado em 1939, após a ocupação nazista da Checoslováquia.


Foi nele que me baseei para escrever, há já alguns anos, um ensaio sobre Franz Kafka, que publiquei no jornal “Correio Popular”, de Campinas, em 15 de abril de 1988. Na oportunidade, observei que o escritor checo, que só escrevia em alemão, “foi um intelectual inovador, originalíssimo, cujos enredos são instigantes e, sobretudo, insólitos. A tal ponto, que ele próprio já se tornou uma espécie de sinônimo do ‘absurdo’, do irracional, do inexplicável pelos padrões comuns, de situações-limites de impasse. Refiro-me a Franz Kafka”.

E prossegui: “Muitos o citam, amiúde, mas poucos tiveram o privilégio de ler sua obra marcante e inesquecível. Sempre que se quer referir, por exemplo, a uma situação absurda, não raro dizemos que a mesma é ‘kafkiana’, sem ao menos nos darmos conta de quem foi esse escritor tão original. E quem, de fato, foi esse Franz Kafka?”

Em outro trecho, destaquei “A obra kafkiana caracteriza-se por refletir imensa solidão. Seus personagens são, em geral, seres incompreendidos, envolvidos em situações absurdas, enredados em estranhas tramas, em enormes equívocos, dos quais, por mais que tentem, não conseguem se livrar. É evidente que cada escritor, consciente ou inconscientemente, passa para o papel aspectos da própria vida. Reproduz, à sua maneira, conforme sua personalidade e o estilo que adota, fatos que protagonizou, ou que testemunhou, ou que ouviu contar. Expõe ao público, sem o menor pudor, as próprias vísceras: suas iras e seus amores, seus anjos e seus demônios interiores, seus pensamentos e seus sentimentos, seus sonhos e pesadelos”.


E concluí a primeira parte desse ensaio da seguinte forma: “Talvez melhor do que os enredos das histórias de Franz Kafka, portanto, sua biografia (uma sucessão de acontecimentos insólitos e absurdos) seja até mais interessante e, sobretudo, reveladora da sua personalidade. Para entender sua obra, pois, é indispensável conhecer alguns detalhes da sua vida”.


Agora, todavia, os checos poderão conhecer, e de “fonte limpa”, detalhes inéditos da vida de um dos seus filhos mais ilustres, a que, por questões políticas, ideológicas e, em última análise, de indisfarçável preconceito, não puderam ter acesso até recentemente. E, com essas informações, poderão, finalmente, apreciar melhor e até entender a grandeza e originalidade da sua obra genial.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


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