Quando
a biografia se impõe
* Por Pedro J. Bondaczuk
Quais os critérios
adotados pelos escritores ao se disporem a redigir a biografia de
alguma personalidade? Se você fosse biografar alguém, hoje, quem
biografaria? Por que? Por ser contratado pela família para fazer
isso? Por dinheiro apenas? Eu não faria essa opção. Não, pelo
menos, por esse motivo.
O primeiro critério para
escolher alguém a ser biografado, sem dúvida (pelo menos dos
escritores sérios e que respeitam a inteligência dos seus
leitores), é o fato dele ser figura conhecida (para o bem ou para o
mal). Ninguém se propõe a biografar quem seja obscuro e não tenha
se destacado em nenhum aspecto ao longo da sua vida.
Ou seja, para ser
biografado, antes de tudo, o sujeito deve ser uma “personalidade”.
A menos que se trate de alguma (rara) figura exemplar, que mesmo
havendo feito coisas extraordinárias, haja sido injustiçada e
permanecido na obscuridade. Claro que este não é o único
critério, mas é o principal.
Há praticamente consenso,
hoje em dia, entre os amantes de literatura, sobre a relevância de
Franz Kafka para as letras não somente europeias, mas mundiais.
Mesmo os que não gostem dele, ou não tenham lido nada do que
escreveu, ou só tenham ouvido falar dele de passagem, admitem sua
importância.
É personalidade, mesmo
passados quase 88 anos da sua morte. Portanto, é um sujeito que tem
tudo para ser biografado. E foi. Só que, jamais, por algum escritor
da sua pátria de nascimento, a atual República Checa. É aquela
velha história do “santo de casa”, que por mais venerado que
seja, para os que convivem com ele, “não faz milagres”.
Agora essa omissão foi
sanada. O filólogo checo, Josep Cernak, lançou, hás algum tempo,
em Praga, do livro “A luta por escrever: sobre o compromisso vital
de Franz Kafka”. Trata-se de meticulosa biografia do autor de “O
processo” (entre tantos outros livros, vendidos aos borbotões
mundo afora, mas que morreu na miséria, vítima de tuberculose, em
Viena, em 1924).
Finalmente, foi feita
justiça na República Checa ao que foi, provavelmente, seu escritor
mais importante em todos os tempos mas que, dadas determinadas
circunstâncias, é pouco conhecido, praticamente um estranho, em seu
país natal.
Quando Kafka nasceu, é bom
que se frise, não existia, ainda, sequer o quer viria a se
transformar na federação da Checoslováquia. Seu território
pertencia ao Império Austro-Húngaro. Ademais, o célebre escritor
tinha outro complicador, que fazia com que fosse, digamos,
“impermeável” aos conterrâneos: só escrevia em alemão, idioma
falado em boa parte da comunidade judia de Praga, a que pertencia, e
onde nasceu.
Há quem diga que ele não
entendia o checo. Cermak discorda. E argumenta: “Afinal, foi capaz
de apreciar a qualidade literária de um autor como Vladislav
Vancura, que tem uma linguagem muito peculiar, muito bela, mas
deformada”.
O novo biógrafo de Kafka
colheu informações em fonte sumamente confiável (não que as dos
outros não fossem): a sobrinha do escritor, Vera Saudkova, que na
época ainda estava viva e lúcida, aos 88 anos de idade, que residia
em Praga.
O que não se entende é o
fato da sua obra haver sido proibida na então Checoslováquia ao
longo de todo o regime comunista, portanto por quase meio século, a
pretexto de ser “sumamente reacionária”. Os tempos, contudo
(felizmente) mudaram. A federação se separou e surgiram a
Eslováquia e a República Checa. E nesta última, que a rigor seria
sua verdadeira pátria de origem, os livros de Kafka despertam,
atualmente, verdadeira “febre”. E não somente sua obra, mas
também sua memória. Há inúmeras estátuas dele pela cidade de
Praga, além de um museu, de uma rua e de uma avenida com seu nome.
Antes tarde, do que nunca.
Ainda assim, como reconhece
Markata Malisova, diretora da Sociedade Franz Kafka, “sua obra é
mais conhecida fora do que dentro do país”. O autor de “O
processo” teve inúmeros biógrafos, a maioria alemães, como foi o
caso de Klaus Wagenbach, por exemplo. O primeiro a biografá-lo foi
seu amigo mais fiel, uma espécie de “irmão espiritual”, Max
Brod, que administrou seu legado até morrer, em 1968, em Israel,
para onde havia emigrado em 1939, após a ocupação nazista da
Checoslováquia.
Foi nele que me baseei para
escrever, há já alguns anos, um ensaio sobre Franz Kafka, que
publiquei no jornal “Correio Popular”, de Campinas, em 15 de
abril de 1988. Na oportunidade, observei que o escritor checo, que só
escrevia em alemão, “foi um intelectual inovador, originalíssimo,
cujos enredos são instigantes e, sobretudo, insólitos. A tal ponto,
que ele próprio já se tornou uma espécie de sinônimo do
‘absurdo’, do irracional, do inexplicável pelos padrões comuns,
de situações-limites de impasse. Refiro-me a Franz Kafka”.
E
prossegui: “Muitos o citam, amiúde, mas poucos tiveram o
privilégio de ler sua obra marcante e inesquecível. Sempre que se
quer referir, por exemplo, a uma situação absurda, não raro
dizemos que a mesma é ‘kafkiana’, sem ao menos nos darmos conta
de quem foi esse escritor tão original. E quem, de fato, foi esse
Franz Kafka?”
Em
outro trecho, destaquei “A obra kafkiana caracteriza-se por
refletir imensa solidão. Seus personagens são, em geral, seres
incompreendidos, envolvidos em situações absurdas, enredados em
estranhas tramas, em enormes equívocos, dos quais, por mais que
tentem, não conseguem se livrar. É evidente que cada escritor,
consciente ou inconscientemente, passa para o papel aspectos da
própria vida. Reproduz, à sua maneira, conforme sua personalidade e
o estilo que adota, fatos que protagonizou, ou que testemunhou, ou
que ouviu contar. Expõe ao público, sem o menor pudor, as próprias
vísceras: suas iras e seus amores, seus anjos e seus demônios
interiores, seus pensamentos e seus sentimentos, seus sonhos e
pesadelos”.
E
concluí a primeira parte desse ensaio da seguinte forma: “Talvez
melhor do que os enredos das histórias de Franz Kafka, portanto, sua
biografia (uma sucessão de acontecimentos insólitos e absurdos)
seja até mais interessante e, sobretudo, reveladora da sua
personalidade. Para entender sua obra, pois, é indispensável
conhecer alguns detalhes da sua vida”.
Agora,
todavia, os checos poderão conhecer, e de “fonte limpa”,
detalhes inéditos da vida de um dos seus filhos mais ilustres, a
que, por questões políticas, ideológicas e, em última análise,
de indisfarçável preconceito, não puderam ter acesso até
recentemente. E, com essas informações, poderão, finalmente,
apreciar melhor e até entender a grandeza e originalidade da sua
obra genial.
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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