O
século XXI será espiritual. Ou não será
*
Por André Malraux
O
enfraquecimento ou o desaparecimento da religião parecem estar, para
alguns, na origem do comunismo ou do nazismo. Será verdade que
apenas um sentimento de entrega a algo que está acima e para além
do ser humano pode criar as condições de tolerância e de
compreensão entre os homens? Antes de mais: terão as religiões
assegurado “as condições de tolerância e de compreensão entre
os homens”?
Não
foi o caso das religiões assíria (cujos deuses eram
antropomórficos) e asteca (também politeísta, e xamanista). (…)
Algumas das leis mais atrozes foram enunciadas por sábios
confucionistas; mas o confucionismo não passa de uma religião dos
mortos. A mitologia grega não é edificante (…). Parece-me que há
duas religiões que terão desempenhado o papel que a generalidade
das pessoas considera verdadeiramente importante, as que unem o amor
e a compaixão: o cristianismo e o budismo. Embora o tenham apenas
podido desempenhar como deve ser durante uma parte da sua história.
O
Cristo bizantino animou durante mil anos uma civilização de amor
sem piedade. Dois em três imperadores bizantinos foram assassinados
ou torturados. (…) No século XIII, o cristianismo ocidental cumpre
um dos mais elevados destinos da História: constrange o Homem à
virtude (…). Cria um herói submetido aos ensinamentos da sua fé
(…) Através de Cristo, pelo seu exemplo. Mas não foi o
suficiente.
Uma
religião une os homens na medida em que faz de cada um próximo.
Apesar de esse próximo se limitar, na maior parte dos casos, a ser
um correlegionário, e, por mais superficial que tenha sido o
humanitarismo do século XIX, somos forçados a constatar que
coincidiu com um dos séculos menos cruéis da História… O
principal adversário da tolerância não é o agnosticismo, mas o
maniqueísmo: nazis e comunistas, mesmo se ateus, são maniqueístas.
Creio,
assim, que a tolerância e a compreensão não podem ser plenamente
defendidas senão por aquilo que verdadeiramente são.
E
o problema – o mistério – é precisamente o fato de pretendermos
defendê-las por isso que são. O homem apenas pode construir-se
perseguindo aquilo que o transcende, e é essa transcendência que se
procura justamente explicar. “Um sentimento de entrega a algo que
está acima e para além do ser humano” não implica
necessariamente seres ou poderes fora da vida terrena.
Sem
esse sentimento, a Humanidade não teria ultrapassado o pitecantropo.
Mas não será esse sentimento uma das componentes do Homem, ao mesmo
título que a inteligência? Deveremos ver nesse sentimento o reflexo
de algo que está para além do próprio ser humano, ou antes a
faculdade que o animal humano – e apenas ele – tem de submeter a
esse sentimento os seus desejos e instintos?
Se,
como sem dúvida pensavam os estoicos, os deuses são apenas as
tochas acesas, uma a uma, pelo Homem para iluminar o caminho que o
arranca da besta (ou, se os deuses são completamente impensáveis),
o maior mistério do universo está no mais ínfimo sacrifício, no
mais pequeno ato de piedade, de heroísmo ou de amor.
A
certeza de que o criador do Homem é também o seu juiz – certeza
que todas as religiões estão longe de ter experimentado – parece
certamente uma garantia de justiça; mas todo o passado nos ensina
que ela é ilusória, e que encontramos, sempre que é preciso,
acordos com o Céu.
Talvez
a questão moral não seja um problema de garantias metafísicas;
talvez as garantias, quaisquer que sejam, a mascarem mais do que a
resolvam. Elas racionalizam-na. E toda a civilização moderna tenta
racionalizá-la, porque substituiu um fantasma pelas noções mais
profundas do que é ser um homem que foram elaboradas pelas grandes
religiões.
Cada
uma, à sua maneira, deu conta da grandeza humana. A Ciência, não:
ela não está interessada na noção de Homem, antes no conhecimento
do Cosmos. A Teoria do Campo Unificado não teria fracassado se o
Homem já não existisse. O drama da civilização do século das
máquinas não é ter perdido os deuses, pois perdeu-os menos do que
se diz: foi ter perdido toda a noção profunda do que é ser homem.
Apenas essa noção (…), tornando inteligível a entrega que é
posta em causa, e sublinhando-se o fato de ser um dos poderes que, no
Homem, renasce sempre, não como sucede com os instintos, mas como
acontece com o heroísmo. Há cinquenta anos que a Psicologia
reintegra os demônios no Homem. É esse o balanço mais sério da
Psicanálise.
Penso
que a tarefa do próximo século, perante a mais terrível ameaça
que a Humanidade conheceu, vai ser a de reintegrar os deuses.
(André Malraux, A propósito do século XXI – L’Express, 21 de Maio de 1955)
*
Escritor
francês de assuntos políticos e culturais. Foi enterrado no Panteão
de Paris, local destinado a personalidades notáveis da França. É
além de um grande escritor um grande pensador da época.
Nenhum comentário:
Postar um comentário