sexta-feira, 29 de junho de 2018

O século XXI será espiritual. Ou não será - André Malraux


O século XXI será espiritual. Ou não será


* Por André Malraux


O enfraquecimento ou o desaparecimento da religião parecem estar, para alguns, na origem do comunismo ou do nazismo. Será verdade que apenas um sentimento de entrega a algo que está acima e para além do ser humano pode criar as condições de tolerância e de compreensão entre os homens? Antes de mais: terão as religiões assegurado “as condições de tolerância e de compreensão entre os homens”?

Não foi o caso das religiões assíria (cujos deuses eram antropomórficos) e asteca (também politeísta, e xamanista). (…) Algumas das leis mais atrozes foram enunciadas por sábios confucionistas; mas o confucionismo não passa de uma religião dos mortos. A mitologia grega não é edificante (…). Parece-me que há duas religiões que terão desempenhado o papel que a generalidade das pessoas considera verdadeiramente importante, as que unem o amor e a compaixão: o cristianismo e o budismo. Embora o tenham apenas podido desempenhar como deve ser durante uma parte da sua história.

O Cristo bizantino animou durante mil anos uma civilização de amor sem piedade. Dois em três imperadores bizantinos foram assassinados ou torturados. (…) No século XIII, o cristianismo ocidental cumpre um dos mais elevados destinos da História: constrange o Homem à virtude (…). Cria um herói submetido aos ensinamentos da sua fé (…) Através de Cristo, pelo seu exemplo. Mas não foi o suficiente.

Uma religião une os homens na medida em que faz de cada um próximo. Apesar de esse próximo se limitar, na maior parte dos casos, a ser um correlegionário, e, por mais superficial que tenha sido o humanitarismo do século XIX, somos forçados a constatar que coincidiu com um dos séculos menos cruéis da História… O principal adversário da tolerância não é o agnosticismo, mas o maniqueísmo: nazis e comunistas, mesmo se ateus, são maniqueístas.

Creio, assim, que a tolerância e a compreensão não podem ser plenamente defendidas senão por aquilo que verdadeiramente são.

E o problema – o mistério – é precisamente o fato de pretendermos defendê-las por isso que são. O homem apenas pode construir-se perseguindo aquilo que o transcende, e é essa transcendência que se procura justamente explicar. “Um sentimento de entrega a algo que está acima e para além do ser humano” não implica necessariamente seres ou poderes fora da vida terrena.

Sem esse sentimento, a Humanidade não teria ultrapassado o pitecantropo. Mas não será esse sentimento uma das componentes do Homem, ao mesmo título que a inteligência? Deveremos ver nesse sentimento o reflexo de algo que está para além do próprio ser humano, ou antes a faculdade que o animal humano – e apenas ele – tem de submeter a esse sentimento os seus desejos e instintos?

Se, como sem dúvida pensavam os estoicos, os deuses são apenas as tochas acesas, uma a uma, pelo Homem para iluminar o caminho que o arranca da besta (ou, se os deuses são completamente impensáveis), o maior mistério do universo está no mais ínfimo sacrifício, no mais pequeno ato de piedade, de heroísmo ou de amor.

A certeza de que o criador do Homem é também o seu juiz – certeza que todas as religiões estão longe de ter experimentado – parece certamente uma garantia de justiça; mas todo o passado nos ensina que ela é ilusória, e que encontramos, sempre que é preciso, acordos com o Céu.

Talvez a questão moral não seja um problema de garantias metafísicas; talvez as garantias, quaisquer que sejam, a mascarem mais do que a resolvam. Elas racionalizam-na. E toda a civilização moderna tenta racionalizá-la, porque substituiu um fantasma pelas noções mais profundas do que é ser um homem que foram elaboradas pelas grandes religiões.

Cada uma, à sua maneira, deu conta da grandeza humana. A Ciência, não: ela não está interessada na noção de Homem, antes no conhecimento do Cosmos. A Teoria do Campo Unificado não teria fracassado se o Homem já não existisse. O drama da civilização do século das máquinas não é ter perdido os deuses, pois perdeu-os menos do que se diz: foi ter perdido toda a noção profunda do que é ser homem. Apenas essa noção (…), tornando inteligível a entrega que é posta em causa, e sublinhando-se o fato de ser um dos poderes que, no Homem, renasce sempre, não como sucede com os instintos, mas como acontece com o heroísmo. Há cinquenta anos que a Psicologia reintegra os demônios no Homem. É esse o balanço mais sério da Psicanálise.

Penso que a tarefa do próximo século, perante a mais terrível ameaça que a Humanidade conheceu, vai ser a de reintegrar os deuses.

(André Malraux, A propósito do século XXI – L’Express, 21 de Maio de 1955)


* Escritor francês de assuntos políticos e culturais. Foi enterrado no Panteão de Paris, local destinado a personalidades notáveis da França. É além de um grande escritor um grande pensador da época. 


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