CCE
* Por João Bosco Strozzi
Todos
os jornais traziam a mesma manchete: “Casa de Empresário
Assaltada, Empregada Estuprada pelos Ladrões”. No conteúdo da
notícia, apenas o modo como houve o assalto sem mencionar os nomes
dos assaltados, apenas o bairro nobre onde acontecera o incidente.
Nos bastidores, no entanto, a história era outra. Não fora a
empregada a estuprada, mas a filha de vinte e dois anos do casal, que
estava escutando música com fones de ouvido, de biquíni, à beira
da piscina, quando foi surpreendida. O pai, empresário do ramo de
informática, estava em uma feira do setor em São Paulo. A mãe
havia ido levar os demais filhos para a escola. A menina estava
sozinha em casa com a empregada quando tudo acontecera. Uma tragédia
que resultou em roubo de aparelhos eletrodomésticos, joias, dólares
e o carro do dono da casa. Nada, porém, poderia ser comparado ao
trauma provocado no corpo e na mente da menina que fora seviciada
pelo chefe da gangue, enquanto os demais faziam a limpeza.
A
polícia, dentro de sua discrição característica, havia soltado o
release para a imprensa sobre o assalto, o estupro, os bens
amealhados pelos bandidos, mas conservara intacta a identidade das
vítimas. Movidos pelo eterno sentimento de recompensa, os detetives
saíram às ruas procurando os meliantes. Em menos de 24 horas, dois
deles estavam na cadeia pública do distrito policial, mas o
principal, e estuprador, ainda estava à solta.
Em
um barraco de Colombo, Táio acordava e mal se lembrava do assalto. O
crack tinha sido o principal estímulo tanto para a coragem como para
o avanço desmedido sobre a menina bronzeada e bem torneada.
Levantou-se e foi ler a Tribuna do Paraná que sua mãe comprava
todos os dias. O assalto estava estampado, mas suas consequências
ainda não explicadas. Um telefonema no celular, no entanto, o
despertou da ressaca. Era uma voz pausada e rouca que o parabenizava
pelo acontecimento. Táio não entendeu quando a voz disse que ele
era o tipo de pessoa que estavam procurando. A voz lhe disse que seus
dois comparsas estavam já presos e que iriam entregá-lo e que, em
poucas horas, ele também seria levado para a delegacia. Por citação
a um amigo de “serviço”, a voz prometeu-lhe proteção, em troca
de um novo serviço, e desligou.
Pelo
visor do celular, Táio não pôde identificar o número ligado, pois
havia um bloqueio. Desconfiado, resolveu se esconder na casa da
namorada. Duas horas depois, ficou sabendo que sua mãe e irmã
tinham sido levadas pela polícia, junto com alguns bens do assalto
do dia anterior. Novamente o telefone toca. A mesma voz, dizendo que
um Monza vermelho estava em frente da casa onde ele estava hospedado
para levá-lo para o novo serviço. Pela janela, identificou o
automóvel, que tinha dois homens dentro. Sem muita escolha, saiu
apressado e entrou pela porta traseira do veículo.
O
Monza arrancou rápido. Os homens não respondiam às suas perguntas,
apenas o olhavam de vez em quando. Quando chegaram a um local ermo,
pararam o automóvel e disseram o que eram autorizados a dizer:
“Nosso chefe quer conhecer você. Nós fazemos filmes de sacanagem,
do tipo violento. Queremos que você seja o nosso artista principal”.
“E o que vou fazer?” – disse Táio. “O que você já sabe.
Vai comer menininhas e ganhar dinheiro com isto”. Falando assim, o
capanga sentado ao lado do passageiro, virou-se para a frente e o
silêncio voltou ao veículo. Novamente o Monza arrancou e dirigiu-se
para a estrada BR-116, em direção a São Paulo. Logo após a
entrada para o Parque Castelo Branco, o Monza saiu da estrada
principal e entrou em um caminho vicinal sem pavimentação. Depois
de aproximadamente 20km, dobrou à esquerda e o capanga-passageiro
desceu para abrir a porteira. Retornou ao carro só após fechá-la
atrás. Mais mil metros e chegaram a uma casa branca, construída no
formato de uma barracão, porém de dimensões menores. À frente, um
Jeep Cherokee estacionado.
Luiz
Carlos Fuentes, o empresário assaltado, tinha tido o pior dia de sua
vida. A filha, Stella havia sido examinada pelo ginecologista da
família, seu relatório seria aceito pelo IML. Sua genitália estava
dilacerada pela violência do ato que, segundo ela, poderia ter sido
por 20 ou 30 minutos de ação. A região anal estava mais afetada
ainda, porém não havia indícios dela poder engravidar, pois o
marginal havia depositado seu sêmen diretamente no seu ânus. Seus
ombros continham sinais de mordidas na parte dorsal, confirmando que
quando se deu o orgasmo, ele estava por detrás dela. Seus seios
estavam inchados e arroxeados, indicando que ele a segurou com as
ambas as mãos, enquanto estava por detrás. Pelo exame, o médico e
amigo, disse a Luiz Carlos que o perpetrador deveria ter um daqueles
pênis de raro tamanho.
À noite, um telefonema intrigante. Uma voz rouca e pausada dizia que tinha o estuprador sob sua custódia. Lamentava o que havia acontecido com a menina. Dizia ser uma pessoa ligada ao crime, mas que não admitia estupradores, pois ele próprio tinha tido uma vítima na família. Dizia também, que era um profissional, e que estava oferecendo seus serviços para o empresário. Perguntou-lhe, o que ele queria que fosse feito com o estuprador. Luiz Carlos, um homem comum, leal contribuinte, jamais envolvido com qualquer que fosse o crime, estava transtornado. Queria a morte lenta do estuprador, mas antes queria ter a certeza de que era realmente o mesmo homem. A voz rouca entendeu e disse-lhe que, no dia seguinte ele teria as provas, mas exigiu que a polícia ficasse fora daquilo.
Não
eram ainda oito horas da manhã quando tocou a campainha da casa de
Luiz Carlos. Pelo interfone, ouviu-se apenas que havia um envelope na
caixa de correio, e depois um som de pneus cantando na arrancada. Com
cautela, Luiz Carlos, que obedecera à voz rouca e não falara com a
polícia, foi à caixa do correio e pegou o envelope. Dentro
encontrou uma carta e várias fotografias. As fotos mostravam o rosto
de Táio, bem penteado e com roupas brancas, e depois Táio nu, de
frente e de lado, e um close do pênis ereto de Táio. O pênis era,
de fato, longo e grosso, compatível com as lesões em Stella. Na
carta, estava escrito:
“Senhor
Luiz Carlos:
O
que este indivíduo fez com sua filha não se faz nem com um inseto.
A justiça, como o Senhor sabe, é falha e se ele for preso, estará
solto novamente em menos de um ano. Outras filhas poderão ser
vítimas desta criatura do demônio. Nossa proposta é de eliminação
deste indivíduo, de uma forma que o Senhor ficará grato para todo o
sempre. O Senhor não terá nenhuma participação na nossa ação,
que será filmada e o Senhor terá acesso ao filme, mais tarde, se
houver negócio. Nosso preço é de trinta mil reais, sendo que dez
mil adiantados, como sinal de cumplicidade, e o restante na troca
pela fita. Para a total credibilidade do que estaremos fazendo, após
o ato, comunicaremos à polícia o local onde o corpo será
despojado. Ligaremos para sua casa ao meio-dia. Não chame a polícia,
pois se assim for, não nos restará outra alternativa do que soltar
Táio.
Atenciosamente,
CCE”
Luiz
Carlos já sabia que o estuprador tinha o apelido de Táio. Ligou
para seu irmão mais velho e pediu que ele viesse urgente até a sua
casa. No escritório, mostrou as fotos para o irmão e pediu
conselhos sobre o que fazer. Mostrar para a filha seria aumentar seu
trauma mas, por outro lado, somente ela e a empregada é que tinham
visto o bandido. Chamaram a empregada e mostraram a foto do rosto de
Táio. Não havia como errar pois a cicatriz na testa, que lhe dava o
apelido, era inesquecível. A empregada confirmou. Ao meio-dia, por
telefone, Luiz Carlos combinou a entrega dos dez mil iniciais no
local determinado: um banco de praça, onde Luiz Carlos sentou e foi
abordado por um homem de preto, com óculos escuros e chapéu também
escuro. A única frase mencionada pelo homem foi a de que qualquer
sentimento de estar sendo seguido iria colocar todo o plano por água
abaixo.
Ao
entrar na sala e sentar-se em uma confortável poltrona, Táio foi
servido com uma caipirinha bem gelada. Minutos depois entrou um homem
de estatura média, boa compleição física, trajando terno escuro
com gravata de seda lilás. Cumprimentou-o com a mão, e começou a
falar com a voz rouca e pausada. “Muito bem Táio. Você está
encrencado com a polícia, eu também estou encrencado. Temos algo em
comum. O que tenho para lhe oferecer é algo que vai mudar sua vida
para sempre. Existe muita gente ruim neste país. Gente que gosta do
que você fez com aquela menina. Gente que compra o jornal para ver a
página policial, não porque quer ver o bandido atrás das grades,
mas porque gosta de saber detalhes dos crimes. Só que os jornais não
mostram os detalhes como essas pessoas querem realmente ver. Nós é
que mostramos. Portanto, precisamos de alguém como você para nos
ajudar. Você vai ser um grande artista. Por isso, precisamos que
você tome um bom banho, pois está fedendo, e depois vista uma roupa
que vamos lhe dar, para uma sessão de fotografias. Você vai morar
em São Paulo. Os filmes serão feitos em grandes cidades do Brasil,
e você irá viajar bastante. Sua cara nunca aparecerá nos filmes,
apenas uma máscara. Você terá vida normal, e ganhará cinco mil
reais por cada filme que fizer. Você vai trabalhar para nós por
cinco anos. Se você sumir, nós vamos encontrá-lo e matá-lo. Tudo
bem?”
“E
se eu não quiser?”
“Você
vai para a cadeia agora mesmo.”
“Tudo
bem. Onde é que tomo o banho?”
O
homem de terno sumiu pela mesma porta de onde entrou. Os capangas
levaram Táio para outro cômodo onde havia um guarda-roupa aberto
com várias peças de vestuário, uma cama, uma mesa, e poltronas
onde numa delas estava uma toalha. Ao fundo, uma porta aberta
mostrava o seu interior ladrilhado indicando o banheiro. Durante o
banho Táio pensava. Será
que vou poder continuar com o crack? Quem são estes caras? Devem ser
do crime organizado. Comando Vermelho? Primeiro Comando da Capital?
Não estou com muita chance de discutir com eles.
Cantando e se esfregando, Táio terminou o banho e escolheu uma
roupa toda branca.
Agora
a sessão de fotos. Com uma polaróide, um dos capangas fotografava
Táio em várias poses. Depois mandou-o tirar as roupas e
fotografou-o nu. Mandou masturbar-se para tirar uma foto do membro
ereto. Depois de terminada a sessão, devolveu-o para o quarto, para
ver TV e dormir. O dia seguinte seria importante, pois veria filmes
estrangeiros sobre o que ele iria fazer aqui no Brasil.
Táio
dormiu bem. Eles tinham lhe dado um sonífero. Quando acordou, os
capangas estavam olhando para ele. Seu estômago dava sinais de fome.
O capanga maior disse-lhe: “O almoço já vai sair. Agora vamos ver
os filmes estrangeiros. Você está sentindo falta do crack?”
“Sim,
uma baforada vai bem.”
“Pois
então tome estes dois comprimidos, você vai ficar legal, é a mesma
coisa que o crack.”
Sentado,
em frente à TV, Táio tomou os dois comprimidos. Em menos de 30
segundos, sentiu-se atordoado e dormiu. Quando acordou, estava na
mesma posição, com a TV ligada, passando um programa esportivo.
Olhou ao redor e encontrou um dos capangas lendo uma revista. “O
que aconteceu aqui?” - perguntou assustado. “Nada, estamos
esperando a fita chegar. Você tirou uma soneca, deve ter sido o
efeito dos comprimidos. Está com fome?”
“Estou
com uma puta fome.”
“Então
não se levante, a comida já vai chegar junto com a fita.”
Em menos de
um minuto, entra o segundo capanga com um prato de macarrão e
almôndegas. Puxou a mesa para perto de Táio, colocou o prato
fumegante em cima, junto com uma garrafa de coca-cola. Táio
debruçou-se sobre o prato e começou a comer com volúpia. Pouco
depois, o capanga voltou com a fita e ligou a TV. A fita iniciou e
mostrava na tela, uma sala branca e dentro dela um homem vestido como
um cirurgião. O cirurgião se afastava e mostrava um paciente
deitado de costas, nu da cintura para baixo, com as pernas cobertas.
O rosto do paciente ficava encoberto por um lençol preso por duas
hastes metálicas. O cirurgião, então, começou a aplicar injeções
na área do púbis do paciente, que estava cuidadosamente raspada a
gilete. Depois, pegando por baixo do volumoso pênis, o cirurgião
amarrou a base fortemente e depois uma segunda amarra foi apertada
logo acima da primeira. Por entre as duas, o cirurgião passou o
bisturi, provocando um sangramento pequeno. Depois de retirar o
pênis, o cirurgião pegou uma agulha grande e costurou o toco que
ficou. Conferindo tudo, o cirurgião colocou por cima um absorvente
feminino e fez um curativo bem compressivo.
A
câmera, então, voltava-se para o pênis, solto, dentro de uma
cuba-rim. O cirurgião pegou a cuba-rim e saiu da sala, sendo
acompanhado pela câmera. Por um corredor, chegou a um local
semelhante a uma cozinha. Ali, dirigiu-se a uma máquina de moer
carne e enfiou o pênis até que aparecessem seus pedaços em grossos
fios saindo por baixo. Depois, juntou tudo a mais uma porção de
carne moída e enrolou-os em almôndegas. Mais tarde, fritou-as e
depois de prontas, abriu pequenos orifícios dentro de cada uma delas
e colocou ali dentro um pó. O macarrão já estava pronto junto com
o molho. Colocou tudo em um prato e deixou esfriar. Com um fade
out
a câmera reabriu em fade
in
de novo na sala de cirurgia. Vagarosamente, a câmera mostrava o
paciente ainda inconsciente e ia percorrendo seu corpo de baixo para
cima, mostrando o curativo bem feito até chegar no lençol. A mão
do cirurgião retirou o lençol, e o rosto de Táio apareceu
dormindo. Novo corte e aparece Táio acordando na mesma posição em
que estava agora, assistindo TV. Depois entra uma pessoa filmada
apenas pelo tronco, carregando um prato de macarrão e entregando
para ele.
Vendo
tudo aquilo, sem entender o que estava acontecendo, Táio, que estava
só na sala, começou a sentir os primeiros sintomas do veneno. Uma
dor começava pelo estômago e se estendia por todo o abdome. As
pernas não se moviam. Tocou a área genital e percebeu o curativo
apertado, porém tudo ainda estava anestesiado. Ao entender o que
estava acontecendo, Táio tentou gritar, mas sua voz estava sendo
entrecortada por uma falta de ar repentina. Olhando para cima, ainda
pôde observar outras câmeras que documentavam seu último e
desesperado sofrimento, que ainda perdurou por mais dez minutos.
*
Médico, Mestre em Saúde Pública pela Universidade Hebraica de
Jerusalém. Doutor em Epidemiologia pela Universidade da Califórnia,
Los Angeles - UCLA. Autor do livro: “SUS Pense -uma reflexão
epidemiológica sobre o SUS”. Editora Cebes, 1997. Atualmente,
pesquisador, professor na PUCPR e assessor de Planejamento do ICS
(Instituto Curitiba de Saúde).
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