quarta-feira, 7 de setembro de 2011



Medo


* Por Rubem Costa

Em qualquer idioma a semântica é a mesma. Peur, paura, fear, angst, miedo. Francês, italiano, inglês, alemão ou espanhol, a língua pouco importa. O termo trás ínsito em si, na variação vocabular em que tramita pelo mundo, a manifestação sensível que acusa em qualquer nível da vida animal o instinto de conservação. Medo. Emoção que ocorre até nos mais singelos seres vivos unicelulares ante a simples ameaça de bruscas ou desproporcionais modificações na condição de existência. É talvez a única manifestação interior que planifica o humano aos demais organismos vivos. Está implícita na existência do homem.
Exsurge nele ainda em sua elaboração no ventre materno. Aconchegada na escuridão do útero, a criança sofre o primeiro choque de desconforto ao ser expulsa para a luz solar. Chora. É a inicial reação ao inesperado, susto que a vai acompanhar vida à fora, marcando-lhe os passos em qualquer circunstância ante uma ameaça real ou imaginária. E esse trauma preliminar, que inaugura a defesa contra a agressão, se amplia depois numa rica paisagem semântica que se debruça em todas as línguas para definir num conceito único a sensação que incomoda a todos. Talvez por isso, pela força de uma variação vocabular extensa, encontra sempre, em qualquer que seja o idioma, uma significação perfeita.
Em espanhol, a exemplo do português, é temor, enquanto em italiano é timor. O francês tem — crainte e o alemão, furcht. Em qualquer representação, entanto, é sempre um termo mágico. Indo ao dicionário português, verifica-se que o Aurélio assim define — “Temor: — ato de temer, medo, susto”. Referenciando a sinonímia, reporta-se o verbete ao canto IV - 29 do Lusíadas em que, traduzindo os preparativos da batalha de Ajulbarrota em que Portugal venceu o exército castelhano, Camões preliba a densidade do termo nos seguintes elucidativos versos: “Quantos rostos ali se vem sem cor/ que ao coração acode o sangue amigo / que nos perigos grandes o temor /é maior muitas vezes que o perigo”. Eis aí, a mola emotiva que comanda o gesto e mostra o ser agarrado a sua própria essência.
Na amplitude de seu poder significativo, o medo rege o ato. Por ele caminha o homem ao longo de sua história. Fatal portanto que da emoção se tenham apropriado as religiões. A regra se estampa milenar no episódio que a Bíblia encerra quando relata a fuga dos hebreus do Egito e põe Moisés a dirigir os israelitas por quarenta anos na caminhada pelo deserto. Como vem escrito no Velho Testamento (Deuteronômio. Cap. 10, Vers, 20) o grande chefe — fundador da religião de Javé — enaltecendo a aliança do homem com Deus, faz dois discursos de advertência ao povo, quando incisivo exclama no segundo: — “E agora, Israel, o que o Senhor, teu Deus, espera de ti? Espera apenas que o temas.” Era a prédica do medo como instrumento de submissão que caminhando pelo séculos transforma o homem em prisioneiro de si mesmo. Mecanismo destinado a acrisolar a criatura por dentro como prévia para ter proteção. Uma forma de não sucumbir pela certeza de amparo. Foi por aí que se consagrou a prefiguração de homem temente a Deus.
Místico, o ser sentiu-se amparado pela obediência. E obedecer é alicate para o respeito que, por sua vez, constitui garantia de composição harmônica. Daí, inclusive, ter surgido na ciência do direito a figura jurídica da legítima defesa putativa como atenuante de crime, entendo-se o adjetivo na amplitude que o latim lhe dá, ou seja, suposição, hipótese de uma agressão presumida que provoca a reação, tornando — como lembra Camões — o temor maior que o perigo. Segurança que se foi derruindo à medida que o pragmatismo como alicerce de vida passou a dar uma visão bruta de existência. Em síntese, é filosofia que ensina: uma verdade não só é como deve tornar-se uma prática de vida.
Conclusão fatal: Deus está longe, o homem está perto. Em consequência, o contexto se inverte. O temor a Deus passa a dar lugar ao medo do próximo. Instante contraditório de um mundo trágico que sob o signo do medo retrata na sociedade o paradoxo da lei de Newton: — toda ação provoca uma reação oposta. Momento de conflito que se corporifica inclusive na escola, recinto outrora sagrado que, reunindo crianças, vai perdendo a inocência, deixando de ser o recanto risonho e franco de que falavam os românticos de nossa literatura. Todavia, atentem ao que digo: escolas de hoje — onde, ao contrário do que se deveria imaginar, derruída a hierarquia, os professores têm medo dos alunos. É o caos. Acuado pelo temor, o ser retira da própria massa de opressão a ferramenta de defesa. A intimidação do oposto como meio de compensação. Para explicar o fenômeno novo, elitistas foram procurar uma denominação em inglês — bullying. Intimidação que em realidade se aplica em todos os planos da sociedade. Paranoia dos cabeças raspadas. Agressão a “gay” e mendigos. Ameaça. Amedrontamento. O ser acuado reage contra a perseguição. Invade escolas e recintos fechados. Mata a esmo. Fuzila companheiros. Assassina mestres. Suicida. Homem bomba faz de si mesmo a vítima de seu ódio. Tudo porque — paradoxo dos paradoxos — o ser saiu do deserto e na multidão esqueceu a advertência de Moisés. Deixou de temer a Deus. Passou a ter medo do homem.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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