sexta-feira, 23 de setembro de 2011







Olha o frevo!

* Por Leonardo Dantas Silva

O frevo como música tem sua origem no repertório das bandas militares em atividade na segunda metade do século XIX no Recife. O maxixe, o tango brasileiro, a quadrilha, o galope e, mais particularmente, o dobrado e a polca, combinaram-se, fundiram-se, dando como resultado o frevo, criação do carnaval do Recife ainda hoje em franca evolução musical e coreográfica.
De o verbo ferver originou-se o vocábulo frevo, no que são concordes todos os estudiosos do assunto. Mas vale lembrar a observação de José Antônio Gonsalves de Mello, em depoimento pessoal, quando chama a atenção da presença do verbo, em sua forma de pronúncia usada pelas camadas menos letradas da população, frever, em autos populares. Exemplo dessas manifestações, ainda no século XVIII, nos é dado por Francisco Pacífico do Amaral, em Escavações, ao relatar as festas em homenagem ao governador José César de Menezes, ocorridas em 19 de março de 1775, quando dois “eremitas”, Antão e Bernabé, cantam dentre tantas essa quadrinha: “Dizei bem , vá de função, / Ferva o meu Padre a folia / Bebamos, que a tudo chegam / As esmolas da caixinha”.
O mesmo pesquisador chama a atenção para o conto de Luís de Guimarães Júnior (1845-1898), publicado no Diario de Pernambuco de 8 de fevereiro de 1871, sob o título “A alma do outro mundo. Conto do Norte”. O conto tem o Recife como cenário, tecendo o seu autor, então estudante da Faculdade de Direito do Recife, comentários sobre o que ele denomina de “samba do Norte”:
O samba de roda do Norte é uma coisa digna de ver. As toadas das cantigas em desafio prendem d’alma e provocam os sentidos. Há certa poesia selvagem naquelas danças características, entrecortadas de moda e trovas, que revela exuberantemente o mundo de sentimento d’alma rude e ingênua do povo!. [...] Minha gente venha ver / Minha prima o que fez / Trazia dois enganados / Comigo foram três. / A pombinha vai voando / Com penas que Deus lhe deu / Contando por uma pena / Mais pena padeço eu.
E lá vem, de vez em quando uma quadra, meter-se na harmonia geral como Pilatos no Credo: Plantei o rox n’água /Encarnado na areia / O amor que não é firme / Por qualquer coisa vareia...
No seu texto o autor transcreve várias estrofes dos cânticos, fazendo referências a Tertuliano, a quem chama pelo apelido, Teto, descrevendo-o como “um rapaz magro, amorenado, como por lá diziam, de olhos vivos e cintura delgada. Morava em Olinda; nas redondezas de 40 léguas não se começava um samba sem ele chegar.— ‘Ferva o samba minha gente ! Entra na roda, Terto!’ — Dançava como um corisco e pulava como um macaco! Corta jaca, Terto! / O passo da tesoura! / O passo da tesoura! / O caranguejo!”.
Derivado de fervorescente, efervescente, ferver — palavras então conhecidas popularmente como frevorescente, efrevescente e frever —, o frevo lembra ainda, segundo Luís da Câmara Cascudo, in Locuções tradicionais no Brasil, “confusão, movimentação desusada, rebuliço, agitação popular”, ou ainda, para Pereira da Costa, in Vocabulário Pernambucano, “apertões de grande massa popular no vaivém em direções opostas, como pelo carnaval, e nos acompanhamentos de procissões, passeatas e desfilar de clubes carnavalescos”.
No meio dos clubes carnavalescos o vocábulo frevo já se encontrava presente em 1907, segundo demonstra Evandro Rabello em artigo sobre Osvaldo de Almeida , publicado no Diario de Pernambuco de 11 de fevereiro de 1990. Naquele ano, 1907, o Clube Carnavalesco Empalhadores do Feitosa publica no Jornal Pequeno, edição do sábado de carnaval, 9 de fevereiro, o repertório da agremiação onde aparece O Frevo como uma das marchas a ser executadas pela orquestra:
Empalhadores do Feitosa, em sua sede que se acha com uma ornamentação belíssima, fez ontem esse apreciado clube o seu ensaio geral, saindo após em bonita passeata, a fim de buscar o seu estandarte que se acha em casa do sr. Alfredo Bezerra, sócio emérito do referido clube. O repertório é o seguinte:
Marchas - Priminha, Empalhadores, Delícias, Amorosa, O Frevo, O Sol, Dois Pensamentos e Luís Monte, José de Lyra, Imprensa e Honorários; Ária - José da Luz; Tango - Pimentão. Agradecemos o convite que nos foi enviado para o segundo dia de carnaval.(grifo nosso).
Para o carnaval de 1907, o Clube Empalhadores do Feitosa contratou como orquestra a primeira fração da Banda da Polícia Militar, realizando o seu ensaio geral na quinta-feira, dia 7 de fevereiro, no Hipódromo, onde se encontrava a sua sede, fazendo no primeiro dia de carnaval uma visita à povoação da Torre, seguindo depois para o seu “passeio” pelos bairros do centro do Recife.
O outro registro do vocábulo, “atribuído como uma criação do cronista Paula Judeu”, Osvaldo da Silva Almeida (1882-1954) , surge no mesmo Jornal Pequeno de 12 de fevereiro de 1908, na coluna Carnaval, assinada por aquele jornalista com o pseudônimo Pierrot, a partir de 31 de janeiro daquele ano. Em sua edição de 22 de fevereiro de 1909, o Jornal Pequeno traz na sua primeira página uma interessante gravura de autor desconhecido com a frase Olha o Frevo, anunciando desta maneira os festejos carnavalescos daquele ano. Pereira da Costa, em seu Vocabulário Pernambucano, assim comenta: “O termo frevo, vulgaríssimo entre nós, apareceu no carnaval de 1909: Olha o Frevo!, era a frase de entusiasmo que se ouvia no delírio da confusão e apertões do povo unido, compacto, ou em marcha acompanhando os clubes”.
Na segunda década dos anos vinte, o vocábulo e seus derivados aparecem com freqüência no noticiário carnavalesco da imprensa do Recife:
"O apertão do frevo, nesse descomunal amplexo de toda uma multidão que se desliza, se cola, se encontra, se roça, se entrechoca, se agarra (Jornal do Recife, nº 65, 1916)";
"O frevo que mais consola, / O que mais nos arrebata, / É o frevo que se rebola / Ao lado de uma mulata. (Diario de Pernambuco nº66, 1916)";
"Os rapazes souberam arranjar uma orquestra tão boazinha, que vem dar uma vida extrapiramidal ao rebuliço do frevo. (O Estado de Pernambuco nº 48, 1914)";
"O clube levará um dos seus carros com uma pipa do saboroso binho berde para distribuir com o pessoal da frevança. (Jornal Pequeno nº 39, 1917)";
"Do mundo a gente se esquece / Pinta a manta, pinta o bode, / E se o frevar recrudesce / Mais a gente se sacode. (Diario de Pernambuco nº 66, 1916)".
Rodolfo Garcia, no seu Dicionário de Brasileirismos (Peculiaridades Pernambucanas), transcrevendo trecho dos versos publicados no nº 32 de A Província, Recife 1913, assim registra:
"O Frevo, palavra exótica
Tudo que é bom diz, exprime,
É inigualável, sublime,
Termo raro, bom que dói...
Vale por um dicionário,
Traduz delírio, festança,
Tudo salta, tudo dança,
Tudo come, tudo rói..."

1.AMARAL, F. P. de Escavações – Factos da história de Pernambuco. Pernambuco: Typographia do Jornal do Recife, 1884.

2. CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções tradicionais do Brasil. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970. p. 313.

3. RABELLO, Evandro. “Osvaldo Almeida – o mulato boêmio que não criou a palavra frevo”, Diario de Pernambuco, 11 de fevereiro de 1990. RABELLO, Evandro. “O aparecimento da palavra frevo”, in Revista de História Municipal . Recife: FIAM, Centro de Estudos de História Municipal, 1997 p. 93-99.

4. Osvaldo da Silva Almeida, o nosso primeiro grande cronista carnavalesco, assinando sob os pseudônimos Paula Judeu e Pierrot, nasceu no Recife em 14 de setembro de 1882, filho de João Claudino D'Almeida Lisboa e Maria do Patrocínio D'Almeida Lisboa. Formado pela Faculdade de Direito do Recife, em 11 de dezembro de 1907, atuou como redator de A Província, Jornal do Recife e Jornal Pequeno, sendo autor de 21 peças teatrais e da valsa Calix de Ambrósia. Mulato de traços finos, como se depreende do seu retrato de formatura e de sua entrevista ao Diario de Pernambuco, em 23 de novembro de 1944, veio a falecer no Recife, no domingo 11 de julho de 1954, conforme noticiário do Jornal Pequeno de 15 de julho daquele ano. Em Café da Manhã, que fora ao ar dois dias antes, pela Rádio Club de Pernambuco na voz de Aldemar Paiva, Mário Libânio finaliza sua crônica com esta observação: "Morrendo agora, na maior pobreza, cego, esquecido, vales ao menos estas linhas como uma modesta braçada de flores derramada sobre a sua catacumba. Na hora de sua morte e na hora do seu enterro, não se ouviram nem clarins nem marchas diabólicas. Tudo era silêncio em derredor, como se uma combinação prévia houvesse acertado esconder todos os ruídos para que o seu coração, que acabava de bater, não sentisse o ruído que tanto animara a sua vida..."

5. COSTA, F. A. Pereira da. Vocabulário pernambucano. Prefácio de Mário Souto Maior. Recife: SEC; Departamento de Cultura, 1967. 816 p. (Coleção Pernambucana; 1ª fase, v. 2).



• Jornalista e escritor do Recife

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