domingo, 18 de setembro de 2011







Enxerimento e distração

* Por Lêda Selma

Tão logo voltou de mais uma viagem, o fazendeiro Generoso dos Santos encontrou algumas pendências à espera de solução. Sentou-se em sua cadeira de palhinha, assumiu um ar sisudo, encheu o nariz de rapé, esperou o imediato efeito, tossiu sem necessidade, pegou a caneta tinteiro e começou uma carta: “Caro compadre e amigo Zeferino Canavieiro: chegando de viagem, encontrei certas pendengas que preciso discutir com voismecê, e a urgência é tamanha. Refiro-me àquelas terr... Bem, encerro o que mal iniciei, assunto tão importante, quanto urgente, porque meu hóspede, compadre Capistrano das Antas, com seu enxerimento conhecido e sua deseducação indigitada, está atrás deste que vos fala, xeretando a correspondência alheia. Assim, interrompo estes escritos até que ele desconfie da inconveniência, deixe de ser intrometido e se tresmalhe para os confins dos infernos com sua curiosidade. Mais tarde, já em meus aposentos, e livre da xeretice do tal compadre, vou fazer o que não me foi possível agora. Abraço do compadre Generoso dos Santos”.
Tudo de mais esdrúxulo acontecia na pacata cidadezinha “Esconderijo da Lua” e, mais especialmente, na fazenda “Aconchego dos amigos”.
Inocêncio, um baiano simpático e falante, também compadre do fazendeiro e seu visitante assíduo, tinha uma explicação, pelo menos insólita, para o nome da cidade: “Um pescador, jogando paciência com a paciência, enquanto espreitava o peixe, viu o céu, de repente, escurecer, as estrelas se entreolharem e um vulto se esgueirar por entre as moitas. Largou a vara de pescar no barranco, encheu a coragem de virilidade, e foi ao encontro do acontecido. E então, aparvalhado, deu de cara com a lua escondida no barranco e de safadeza com o rio. Não é que a preguiçosa, mesmo de plantão, dava um jeito de matar o serviço e ficar de dengos com o amado?”.
De certa feita, em mais uma noitada entre amigos, o também fazendeiro Simplicio da Silva, notório por sua distração sem rédeas e seu jeito simplório e desenxavido, após muitas horas de prosa e várias garapa (era abstêmio), despediu-se de todos, com sua tradicional justificativa: “Vou indo, antes que a noite espiche seu rastro lá pras bandas de casa e meu cavalo refugue ao passar pela beirada do rio onde as almas penadas se banham”.
Mal chegou em casa, sentiu falta dos seus “para-brisas-de-olhos”, ou “óios avursos”, e matutou, matutou, até concluir que os tinha esquecido na fazenda “Aconchego dos amigos”. Rapidamente, pegou um papel bastante roto, afinou mais a ponta do lápis, coçou a testa como se ativasse o pensamento e escreveu: “Caro compadre, amigo e vizinho, Generoso dos Santos, que o dia de amanhã lhe seja propício. Desculpe o cedo das horas para a chegada de meu agregado, peão Chico Vesgo, mas estou carecendo de um adjutório do compadre. Por gentileza, espie no peitoril do alpendre se encontra meus óculos; acredito que eles pernoitaram aí. Se encontrar, mande os folgados de volta pelo mesmo portador. Agradecido. Abraço do comp... recolho, por enquanto, o abraço, por carecer de um P.S.: me desculpe por remendar essa missiva, é que acabei de passar a mão pela cabeça e achei os perdidos. Dispenso, assim, o amigo do incômodo e da trabalheira de procurar o que eu próprio já achei. Agora, lhe devolvo o abraço. Deste seu criado, Simplício da Silva”.
Mais uma reunião na fazenda “Aconchego dos amigos”, em noite calorenta. De repente, todo esbaforido, apareceu o tal peão, Chico Vesgo, que acabara de ser flagrado, literalmente, com as calças na mão, por um recém-chegado visitante (e, ao contrário do que pensou, o homem nada tinha visto, além de suas calças arriadas), e, apavorado, com a explicação engastalhada na língua, gaguejou: “Não tive culpa, juro! Pensei que fosse uma assombração desavergonhada, nuinha, com as intimidades dianteiras e traseiras balangando pra me atazanar a macheza, e, quando dei fé, tinha encarado a tarada, até porque nunca tive medo de assombração. E só depois do sucedido, foi que descobri: a assombração não era assombração, era a mulé do senhor!”, e apontou para o visitante.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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