quinta-feira, 15 de setembro de 2011







Caduco


* Por Gustavo do Carmo

De repente as pessoas passaram a me ver com pena. Entre eles meus filhos e meus netos mais velhos. Os meus netos mais novos e os meus bisnetos, tão imaturos, riem de mim pelas costas. Na minha frente, apenas sorriem, mas percebo que é um sorriso irônico.
De repente meus filhos começaram a me desmentir. Aliás, só tenho um filho ainda vivo. Os outros dois já morreram. Também me toquei que os meus irmãos, com os quais ainda converso muito, já morreram. Enfim, me toquei que eu estou falando sozinho.
Outro dia o meu neto do meio, aspirante a escritor, quase perdeu a paciência comigo quando lhe alertei que a ditadura do Estado Novo iria censurar o conto que ele escreveu.
—Vovô. Não estamos mais no Estado Novo. Estamos na democracia.
— Ah, é. Agora que eu me lembrei. Estamos no governo JK, né?
—Não vô. O governo JK acabou há cinqüenta anos. Quem governa agora é o PT.
Eu ouvi PC e gelei. Os comunistas tomaram o poder, mesmo! Quase ensaiei um escândalo para sair do Brasil. Mas nem forças pra gritar eu tenho mais. Meu neto me corrigiu. Disse em voz mais elevada que era pê-tê, de tatu. Partido dos Trabalhadores. Se é que de trabalhador, esse partido só tem o nome, eu comentei.
Meu neto concordou um pouco comigo. Está vendo? Não estou tão caduco assim. Mas depois ele me explicou passo a passo: que o PT de hoje está na direita. Que hoje vivemos numa democracia (bem falsa, aliás), que já derrubamos um presidente corrupto, já elegemos duas vezes o mesmo presidente no primeiro turno. Aliás, o que é primeiro turno? Na minha época isso queria dizer turno de horário. Meu neto me explicou que candidato que não obtém cinqüenta por cento mais um voto tem que disputar o segundo turno com o segundo mais votado no tal primeiro turno.
Meu neto me deu uma folga. Ou se deu uma folga? Pedi para a minha nora me levar na Galeria Cruzeiro. Queria ir num restaurante no terraço de lá. Ela, que é mineira, desconhece esse lugar aqui no Rio e quase me levou para Copacabana. Se confundiu com a Galeria Menescal. Meu filho, seu cunhado (ela é viúva de um filho falecido) a socorreu dizendo que a Galeria Cruzeiro não existe mais há mais de cinqüenta anos. Porra, tudo acabou há mais de cinqüenta anos nesse país? Será que eu fiquei em coma e estou acordando no século XXI? Meu filho prometeu me levar na Galeria Menescal. Menos mal.
Minha família, que no início desse relato me olhava com pena, agora me olha com preocupação. Preocupação com o meu estado de saúde. Eu me sinto bem. Mas as besteiras que eu tenho falado aqui estão lhes preocupando. Não são só minhas besteiras, não. Outro dia saí sozinho e me perdi. Levaram doze horas para me encontrar.

Eu fui dar uma volta pelo bairro e, ao invés de entrar no prédio, fiquei procurando o casarão onde eu morava com os meus pais. Claro que o casarão foi demolido e eu me desesperei. E ainda paguei mico perguntando por ele para os jovens moradores da rua. Quando fui localizado pelo meu neto mais velho, eu ainda pedi para visitar o Cardoso. Só não sabia que o meu amigo de infância havia morrido há dez anos.
Agora me bateu uma preocupação. Meu neto do meio estava escrevendo um conto e eu estava com medo dele ser perseguido pelo Estado Novo. Realmente a ditadura do Vargas acabou. Estamos agora é no regime militar. Preciso avisar a ele. Ah, não! Me lembrei que estamos no governo Sarney, que a ditadura já acabou. Ou é o governo Fernando Henrique? Ih, será que foi aquele sapo barbudo do Lula que foi eleito? Se ele assumir, vai transformar o Brasil em um país de esquerda.
Apareceu o meu bisneto mais velho querendo conversar comigo. Ele tem uns nove anos de idade.
—Oi, vô.
— Oi, meu neto querido. Toma: mil cruzeiros para você comprar uma bala. Dei-lhe uma nota com as duas esfinges do Barão do Rio Branco.
— Vô, acorda! Esse dinheiro não vale mais nada.
— Como mil cruzeiros não valem mais nada??? Mil cruzeiros dá pra comprar até um chocolate importado.
— Vô, nossa moeda agora é o Real. Desde que eu nasci já era assim.
Agora fui eu que fiquei com pena do meu neto. Quer dizer, do meu bisneto. Ele acabou ficando com a nota de mil cruzeiros. Ele é um menino esperto e vai correr pra mostrar para os amiguinhos mais velhos as notas que seu avô usava. Mas se afastou de mim assustado.
Quanto a mim, meu filho me levou para fazer exame depois daquele susto que dei neles, mas não estou com Alzheimer. Estou ficando caduco mesmo. Agora, me dá licença que eu vou lá na banca comprar a última edição da revista O Cruzeiro e depois fazer as malas para viajar pra Nova York e visitar o World Trade Center.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

Um comentário:

  1. Delícia de texto Gustavo, fez-me lembrar de meu avô que era Getulista ferrenho e na sua concepção
    "O pai dos pobres" literalmente.
    O vovô não está caduco ele é apenas um apaixonante
    saudosista.
    Abraços

    ResponderExcluir