sábado, 17 de setembro de 2011







O pneu estourado

* Por Sílvio Lancellotti


Detestava trocar pneu. Na verdade, ele odiava automóveis. Forçado pelo pai, aprendera a dirigir – mas, se recusara a tirar carteira de motorista. Não temia pegar ônibus. Não se incomodava em viajar de metrô. Aliás, sempre que podia, escolhia os seus endereços de trabalho pela facilidade da condução. Em ocasiões de emergência, enfiava a mão no bolso e contratava um taxista.

Solteiro, morava sozinho, nas imediações de um parque no qual, todas as manhãs, praticava as suas corridinhas ao lado de Xico, o seu fiel Labrador. O cão idolatrava a água e não se incomodava em galopar, com o dono, sequer nas jornadas de temporal. Pois foi debaixo de um aguaceiro, certa data, numa das suas corridinhas, que percebeu uma vizinha, particularmente bonita, com o carro avariado. Por meses havia esperado uma chance de se aproximar. Mas, não fantasiava a sua possibilidade em tal situação: um pneu estourado...

De longe, analisou a irritação da garota, irada, aos pontapés na roda que murchara. Criou coragem. Prendeu o Labrador na guia e rumou até a moça. Ah, mais linda ainda, de cabelos ensopados, a chuva a lhe banhar o rosto – e, melhor ainda, a grudar a camiseta branca na pele dos seios sem um sutiã.

Com o charme disponível, perguntou: “Quer uma ajudazinha?”

A vizinha, obviamente, aceitou. E, com um sorriso, apontou o macaco. Não tinha a menor idéia de como utilizar equipamento tão soturno. Fingiu, de todo modo, ser um especialista. Utilizou a intuição, e a inteligência...

Em dois minutos, conseguiu encaixar o macaco no suporte debaixo do veículo. E, em mais dois, minutos conseguiu levantá-lo o suficiente para tentar a extração das porcas. Apanhou bastante e, num total de dez minutos, já tinha completado a infame operação. Lembrou-se de sugerir à garota: “Agora, você precisa procurar um borracheiro...” De volta, ganhou mais um sorriso.

Foi só, porém. A vizinha montou no carro e partiu, provavelmente atrás do borracheiro. Restou-lhe o consolo de um carinho na nuca do Labrador. Desalentado, se encostou no balcão de um barzinho de esquina e se aqueceu com um conhaque, absolutamente insólito naquela hora. Repetiu a dose e, daí, lentamente, decidiu voltar à sua casa. Naquele dia, fugiu do trabalho.

Uma semana depois, ao reprisar a corridinha, viu que o carro da garota se localizava, precisamente, no mesmo ponto do pneu furado. Pensou em se desviar. A vizinha, todavia, acenou, reacenou – e gritou: “Ei, você!”

Aprochegou-se e, impactado, recebeu um convite: “Eu nem tive tempo de agradecer pela sua gentileza. Gostaria de tomar um café comigo?”

Claro que topou. Um café que redundou em um casamento, em um par de filhos e em uma razoável economia. Continua um inimigo do automóvel. A mulher, contudo, cotidianamente lhe dá carona de casa ao escritório.

* Diplomou-se em Arquitetura. Trabalhou na revista “Veja” de 1967 até 1976, onde se tornou editor de “Artes & Espetáculos”. Passou por “Vogue”, agências de publicidade, foi redator-chefe de “Istoé”, colunista da “Folha” e do “Estadão”, fez programas de gastronomia em várias emissoras de TV, virou comentarista de esportes da Band, Manchete e Record, até se fixar, em 2003, na ESPN. Trabalha, além da ESPN, na Reuters, na “Flash”, no portal Ig e na “Viva São Paulo” e é sócio da filha e do genro na Lancellotti Pizza Delivery – site de Internet www.lancellotti.com.br.

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