terça-feira, 13 de setembro de 2011







A Torre de Babel

* Por Rubem Alves


1. Minhas idéias estão em cacos. Minha cabeça é uma sala de projeção de slides. Imagens aparecem e desaparecem sem parar e sem ordem aparente.
2. A patética figura de Bush, diante da televisão: olhinhos de coelho assustado, sem saber o que dizer. Líder da nação mais poderosa e arrogante do mundo. Mas ele ignora o mundo. Teve um sonho fantástico: transformar os Estados Unidos numa bolha auto-suficiente e fechada, protegida por uma couraça que nenhum míssil poderia penetrar. Acho que ele se inspirou nos guerreiros medievais, que se protegiam com armaduras de ferro. Imaginou-se como o líder que seria lembrado como aquele que havia transformado seu país num guerreiro invulnerável, protegido por um escudo imperfurável: um outro “Super Herói“. Aí, de repente, apareceu-me uma imagem cômica: dois guerreiros medievais em luta, medonhos em suas armaduras, espadas batendo contra o ferro. É então que um deles pisa num formigueiro de formigas lava-pés... Você já pisou num formigueiro de formigas lava-pés? O nome está dizendo: elas lavam o pé. É só tocar o formigueiro que elas saem, minúsculas, rapidíssimas, centenas, milhares, sobem pelos pés, pelas pernas, entram no sapato, nas meias, no meio dos dedos, e vão picando por onde vão. E a gente arranca sapato, meias, e se põe a esfregar e estapear pés e pernas, para se livrar delas... Imagino o que teria acontecido com aquele guerreiro, protegido por uma armadura que nenhuma espada podia perfurar, quando atacado pelas formigas lava-pés... Deve ter sido um balé hilariante. Mesmo as armaduras mais perfeitas têm frestas. Era isso que Bush ignorava. Não sei se ficou sabendo. O golpe foi o mais espetacular. Foi planejado para ser espetacular. Aqueles que o prepararam queriam que o mundo visse a dança do guerreiro impenetrável. Nada mais espetacular, sem dúvida. Mas não o mais terrível. O mais terrível não será espetacular. Será silencioso. Não dará transmissão por televisão. Homens e mulheres, discretamente, sem alarde, carregando em seus bolsos tubos de ensaio cheios de bactérias letais. Fácil abri-los num metrô, numa igreja, num supermercado, num teatro. Ninguém percebe. Mas a morte está solta. Disso tiramos duas simples lições. Primeira: Não é possível ter segurança no mundo em que vivemos. Todas as armaduras têm frestas. Segunda: Ou aprendemos a viver como seres racionais ou nossa civilização estará condenada.
3. Mitos são profecias – representações poéticas do destino humano. A Torre de Babel – símbolo da mais arrogante pretensão dos homens: queriam ser iguais a Deus, queriam ter poder absoluto. Pensavam que o poder, forte, lhes garantiria o viver, fraco. Mas quando o “amor ao poder“ se torna o motivo dominante das ações humanas, a linguagem entra em colapso: os homens perdem a capacidade de se entender: a confusão das línguas. O dinheiro é o símbolo supremo do amor ao poder. Nele estão as sementes da autodestruição. No dia 11 de setembro de 2001 o mito se transformou em história: a destruição das Torres...
4. Imagens das minhas experiências com a guerra. 1942. Naquele tempo já existia a tal de globalização: nada, em nosso mundo, é isolado: a guerra acontecia na Europa; o açúcar acabou na cidadezinha onde eu morava, no sul de Minas. O jeito foi comprar os estoques de balas que se vendiam nas vendas, guardadas em vidrões de boca larga. A gente fervia as balas na água de fazer café. Depois acabaram as balas. O jeito era apelar para a sacarina. Horrível. Amarga. Café sem açúcar. O açúcar era bem raro, que só se comprava no mercado negro. Meu pai, viajante, conseguiu comprar meio quilo de açúcar. Eu me lembro: nos reunimos na cozinha e o meu pai colocou sobre a mesa o embrulhinho que ele foi solenemente abrindo, até que o pó branco apareceu. Morava em nossa cidadezinha uma velhinha maravilhosa, fofa, macia, branca de pó de arroz, que muito amávamos: Lilisa. Meu pai se lembrou dela. E num gesto supremo de amor, separou com uma faca metade do açúcar, embrulhou-o para presente, e fomos todos, em procissão, até a casa da Lilisa, conduzindo em andor o corpo de Cristo! Depois acabou a gasolina. Meu pai tinha um carro. Parado, havia o perigo de que os pneus se estragassem. Providenciou quatro suportes de madeira e sobre eles colocou o carro inútil. Inventaram então o gasogênio: fornalhas cilíndricas que se colocavam na traseira do carro, para a queima de carvão. Dessa queima saía um gás, acho que metano, que era usado como combustível. Menino, não me interessei pelos detalhes tecnológicos do gasogênio porque meu pai não tinha um. Mas os carros parados não alteraram em nada a nossa vida. Os principais meios de transporte de que as pessoas se valiam continuavam funcionando, posto que não dependiam de gasolina: as pernas, os cavalos, as carroças, os carros de boi, as charretes e o trem de ferro.
5. Globalização. Globo. Tudo está ligado numa estrutura única. Globalização: todas as partes do nosso mundo estão inter-ligadas. O dinheiro faz as ligações. Dinheiro é poder. O poder não entende a linguagem do amor. Daí a “confusão das línguas“. Essa é uma das lições mais preciosas de Marx: o capitalismo não conhece os “valores de uso“ – ligados à vida; só conhece os “valores de troca“, ligados ao dinheiro.
6. Globalização: bolhas de sabão são globos. Nas estruturas globais basta que se rompa um único elo da estrutura para que o todo se desmorone. Globalização significa: vivemos numa bolha de sabão: estrutura maravilhosa que se rompe se o vento soprar mais forte. Vivemos na estúpida ilusão da solidez do mundo em que vivemos. Como viviam aqueles que, diariamente, trabalhavam nas Torres.
7. Já imaginaram o que vai acontecer se, por acaso, faltar combustível? Faltou, quando eu era menino. Não fez muita diferença. Mas, e se faltar agora? Todos os meios de transporte paralisados. Os carros parados nas garagens – como o Plymouth de mau pai, em 1942... As geladeiras se esvaziando. Será inútil ir à pé aos supermercados para comprar o que nos falta. Também os seus estoques estarão vazios: os caminhões estão parados. A imaginação fértil pode mesmo imaginar o início de necessidades antropofágicas...
8. Quem vai sobreviver? Os índios, remando suas canoas, pescando nos rios, caçando nas florestas... Os pobres nordestinos com seus jegues, sobrevivendo como sempre sobreviveram... Os pequenos agricultores, em lugares distantes, com suas hortas, galinhas e porcos...
9. Os dinossauros desapareceram. As lagartixas sobreviveram. Como disse um economista indiano: “It is sure that the fittest will survive. But there is no indication that the fattest are the fittest...“ (É certo que os mais aptos sobreviverão. Mas não há nenhuma indicação de que os mais gordos sejam os mais aptos ).
10. Rollo May sugeriu um epitáfio a ser colocado no túmulo dessa espécie em perigo de extinção chamada “Homo Sapiens“: “Como o dinossauro ele tinha poder sem capacidade de mudança, força, sem capacidade de aprender.“
11. Psicologia: pus-me na posição do piloto, seu avião apontado na direção da Torre. Imaginei o que teria sentido. Medo? De forma alguma. Certamente havia um sorriso nos seus lábios. Ele devia estar possuído por uma alegria imensa, inebriado pelo seu deus: a Morte. O desejo de vingança é um dos desejos mais profundos e mortíferos da alma humana.
12. Sansão, como é sabido, foi um herói bíblico, de força descomunal. Seduzido por Dalila, filistéia linda, ele lhe revela o segredo de sua força: os cabelos. E ela, valendo-se do seu sono, os corta. Fraco, é preso pelos seus inimigos que lhe furam os olhos. O que se segue é a transcrição de um texto bíblico. Sansão estava cego mas seus cabelos haviam crescido. É então levado pelos seus inimigos para uma grande celebração de triunfo, num templo. “E Sansão clamou por Deus e disse: Dá-me forças para me vingar dos Filisteus... E Sansão se colocou entre as duas colunas sobre as quais a estrutura do templo se apoiava, a mão direita contra uma, a mão esquerda contra a outra – e sobre elas colocou toda a sua força. E o templo ruiu sobre os líderes e sobre o povo. E assim, aqueles que ele matou com sua morte foram mais numerosos que todos os que havia morto com a sua vida...“ (Livro de Juizes 17: 28-30). É possível que a lenda do piloto esteja sendo contada ao lado da lenda de Sansão...
13. Os terroristas não se chamam terroristas. Somos nós que lhes damos esse nome. Eles se acreditam instrumentos de Deus para o estabelecimento da verdade. Não são suicidas. São mártires que se sacrificam para que a verdade triunfe. Aquelas Torres eram templos do Demônio. Haverá coisa mais importante no mundo que derrotar o Demônio? Contra ele todos os métodos são legítimos. Que são umas poucas vidas quando o destino do universo está em jogo? Não era assim que pensava a Igreja quando acendia fogueiras para queimar os hereges em praça pública, em espetáculos oferecidos para prazer e edificação espiritual das pessoas mais delicadas e religiosas?
14. Osama Bin Laden: seu rosto não se parece com o rosto de um santo? O perigo não vem dos que se silenciam sobre Deus. O perigo vem daqueles que estão convencidos de serem instrumentos para a realização da vontade de Deus.
15. Todo cadáver é semente. Todo túmulo é canteiro. “E o cadáver que você plantou no seu jardim o ano passado? Já começou a brotar?“ (T. S. Eliot)
16. “E talvez chegará o grande dia em que um povo, notável por guerras e vitórias e pelo mais alto desenvolvimento de uma ordem e inteligência militares, e acostumado a fazer os mais altos sacrifícios por essas coisas, exclamará livremente: ‘Nós quebramos a espada!‘ – e com isso destruirá suas organizações militares até seus mais profundos fundamentos. Tornar-se desarmado quando se foi o mais bem armado, a partir de um sentimento – esse é o meio para a paz real, que deve descansar sobre a paz de espírito. (...) Antes perecer que odiar e temer, e duplamente ‘antes perecer que fazer-se odiado e temido‘ – essa deveria se tornar, algum dia, a máxima suprema para cada povo.“ (Nietzsche)
17. “Somente onde há túmulos há também ressurreições“ (Nietzsche). É preciso que a catástrofe seja um túmulo de onde uma vida nova surge.
18. A natureza ignora a loucura dos homens: os ipês amarelos continuam a florescer. “Ah! Como os mais simples dos homens são doentes e confusos e estúpidos ao pé da clara simplicidade e saúde em existir das árvores e das plantas!“ (Alberto Caeiro)

(Correio Popular, Caderno C, 16/09/2001.)






* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

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