A capivara
* Por Fausto Brignol
Naquele tempo, era comum as pessoas se reunirem à volta duma fogueira, tomando um mate amargo e contando causos. No serão. Coisa bonita de se ver: as estrelas se encachoeirando quando a noite vai ficando velha, luzindo no firmamento. Bebia-se o mate com devoção, quietamente. Às vezes, alguém pegava um violão e cantava alguma milonga, uma chimarrita e até uma rancheira, se havia maior motivo de alegria ou de regozijo – ou se o dia seguinte fosse livre para feriar. Mas nada de muito folgado – folgança era para os dias de baile. Um cantar breve, comedido, para alegrar e tirar o susto – quiçá houvesse em algum coração – da escuridão que confrangia a todos e impunha o respeito pelos silêncios da noite.
Lá pelas tantas, depois que as mulheres já tinham se retirado pras casas, o violão tinha parado e os cuidados do chimarrão tinham passado para o mais moço, alguém pigarreava, se mexia e falava:
“Pois... como eu tava dizendo..."
Era o sinal. Todos se ajeitavam mais comodamente para ouvir o primeiro causo, a que se seguiam outros, como se fosse um torneio. A gurizada de menos de trinta anos não tinha direito de participar – ainda não tinham vivido -, só o de escutar e de exclamar alguma coisa, quando muito.
Os causos eram os mais diversos e o tema da noite era ditado por aquele que contava o primeiro, mas sempre ligados aos mistérios da vida na campanha. E sempre ouvidos com muita atenção, por mais que fossem repetidos a cada serão. Eram entremeados de expressões exclamativas a cada pausa do proseador. E eram muitas as pausas, enquanto o fogo ia virando brasa.
- É verdade!...
- Quem haveria de dizer?!...
- Mas bá!...
Por mais incrível que fosse a estória, todos concordavam, ao final, que era a mais pura verdade. Aquele que tinha terminado de contar um causo, olhava em volta, como numa espécie de desafio, ajeitava o bigode e completava: “Pois foi isso!” Ou, simplesmente: “Foi assim”.
Ninguém sequer sonhava em desdizer. Seguia-se um silêncio profundo. Depois, alguém se mexia no seu lugar, pigarreava, cuspia de lado e, por sua vez, começava: “Pois eu, certa vez, lá pros lados do Banhado Velho...”
E assim continuava, até completar a roda. Depois, quando terminava, o mais velho se levantava, calmamente, ajeitando as bombachas, e costumava dizer:
“Buenas, já são horas, daqui a pouco o galo vai cantar..."
E todos se levantavam e se despediam com fortes apertos nos braços e tapas nas costas - como se tivessem acabado de participar de rituais misteriosos e trocado mensagens sigilosas que a noite, o fogo e o campo tinham propiciado - e se afastavam, lentamente.
Certa vez, a conversa enveredou pras caçadas e pescarias, e foi um tal de contar causos de feitos espetaculares que, quando o seu Chico contou como pegou um jundiá enorme que tava dormindo em um recanto próprio do lagoão e, mesmo depois de levar o esporão na mão (e mostrava a cicatriz pra todos) carregou ele pra margem, segurando pelas guelras, e foi quando ouviu o bicho dizer que não era direito acordar ele assim da sua sesta, e o seu Chico, mais respeitoso que assustado, devolveu ele pra água – que um dos guris que estava ao meu lado, com pouco mais de vinte anos, desatou a rir, para minha vergonha e o constrangimento de todos.
Enquanto uns olhavam pra baixo e outros pra cima, o seu Chico gritou “Arre!”, pegou o guri pelo lenço do pescoço e gritou na cara dele: “Mas tu tá duvidando de mim, seu mijado?!” E se o qüera não tivesse atinado em dizer que estava rindo era do susto do jundiá ao ser acordado daquele jeito, a coisa teria ficado muito feia.
Meio aperreado, o seu Chico sentou de novo e foi quando o meu tio Pedro, que era liso de esperto, disse alto:
“Pois eu já falei até com capivara. E tá pra nascer o macho que duvide disso!”
Todos atentaram. Causo contado pelo meu tio era causo para ser lembrado para sempre.
O meu tio pigarreou, limpando a garganta, pediu mais um mate, sorveu uns dois goles e falou:
“Pois, certa feita eu estava numa roda que nem esta aqui; roda de causos, de mate e de canha”. Bebeu mais um gole do mate e continuou:
“Mas tinha chegado gente da cidade, gente boa, gente amiga, mas muito de contar prosa. E falavam de caçadas e de pescarias, e disso e daquilo, como se soubessem tudo do campo, e das armas que usavam e dos calibres que preferiam – esse tipo de coisa...”
Todos espicharam as orelhas. Ninguém gostava muito de gente da cidade, porque era metida a inventar estórias, e o causo do meu tio prometia. Até o guri que tinha rido estava mudo ao meu lado, cabisbaixo, mas atento. Meu tio olhou um por um e recomeçou, devagar:
“Foi quando eu aparteei. Disse pra eles que isso de matar os pobres dos bichinhos de Deus com arma era até covardia. Queria ver pegar à mão. Eles meio que tentaram rir, mas eu olhei sério e acrescentei: - amanhã cedo vou pegar uma capivara na unha.
“De manhãzita, encilhei o meu cavalo e segui a trote para o rio, umas duas léguas daqui. Era lá que as capivaras iam se dessedentar, quando acordavam. Quando voltei, perto do meio-dia, estava todo molhado e embarrado e trazia as botas numa das mãos. Todos já estavam inquietos, me esperando pro almoço.
“Um deles me perguntou:
“Matou a capivara, seu Pedro?
“Eu respondi: - Eu não disse que ia matar, disse que ia pegar à unha, e peguei.
“E ele: - E onde está o bicho?
“Olhei firme nos olhos dele e falei:
“Quando cheguei lá, de manhã cedo, o bando de capivaras já estava bebendo água. Deixei o cavalo pastando, ali perto, tirei as botas e entrei no rio, devagarito pra não espantar. Mas capivara é bicho manso, não se assusta assim no más. Olhei pra uma, olhei pra outra e escolhi a mais encorpada. Quando cheguei perto e peguei firme, mas sem machucar, ela me olhou nos olhos e disse:
“O que é isso, Pedro? Deu pra nos caçar, agora?
“Meio envergonhado, respondi:
“Foi uma aposta...
“Ela me olhou de novo e se afastou, devagar, tranquilita. Eu fiquei um pouco por ali, olhando pras capivaras e pras capivarinhas, tão mansas... Depois de um tempo molhando os pés e pensando na vida, voltei. E foi isso!...
“Ninguém falou mais nada. À tardinha - depois de conversarmos sobre tudo, menos caçadas e pescarias - foram embora. Foi assim.”
Tio Pedro parou de falar e todos ficaram quietos durante um bom tempo. Depois, aos poucos, nos levantamos e começamos a nos despedir, sem pressa. O galo já cantava. O seu Chico abraçou o tio Pedro com força e vi no seu rosto, no canto do olho, o que parecia ser uma lágrima. Ao meu olhar, ele disse: “É um cisco...” E passou a mão no rosto.
Foi assim.
• Jornalista e escritor.
* Por Fausto Brignol
Naquele tempo, era comum as pessoas se reunirem à volta duma fogueira, tomando um mate amargo e contando causos. No serão. Coisa bonita de se ver: as estrelas se encachoeirando quando a noite vai ficando velha, luzindo no firmamento. Bebia-se o mate com devoção, quietamente. Às vezes, alguém pegava um violão e cantava alguma milonga, uma chimarrita e até uma rancheira, se havia maior motivo de alegria ou de regozijo – ou se o dia seguinte fosse livre para feriar. Mas nada de muito folgado – folgança era para os dias de baile. Um cantar breve, comedido, para alegrar e tirar o susto – quiçá houvesse em algum coração – da escuridão que confrangia a todos e impunha o respeito pelos silêncios da noite.
Lá pelas tantas, depois que as mulheres já tinham se retirado pras casas, o violão tinha parado e os cuidados do chimarrão tinham passado para o mais moço, alguém pigarreava, se mexia e falava:
“Pois... como eu tava dizendo..."
Era o sinal. Todos se ajeitavam mais comodamente para ouvir o primeiro causo, a que se seguiam outros, como se fosse um torneio. A gurizada de menos de trinta anos não tinha direito de participar – ainda não tinham vivido -, só o de escutar e de exclamar alguma coisa, quando muito.
Os causos eram os mais diversos e o tema da noite era ditado por aquele que contava o primeiro, mas sempre ligados aos mistérios da vida na campanha. E sempre ouvidos com muita atenção, por mais que fossem repetidos a cada serão. Eram entremeados de expressões exclamativas a cada pausa do proseador. E eram muitas as pausas, enquanto o fogo ia virando brasa.
- É verdade!...
- Quem haveria de dizer?!...
- Mas bá!...
Por mais incrível que fosse a estória, todos concordavam, ao final, que era a mais pura verdade. Aquele que tinha terminado de contar um causo, olhava em volta, como numa espécie de desafio, ajeitava o bigode e completava: “Pois foi isso!” Ou, simplesmente: “Foi assim”.
Ninguém sequer sonhava em desdizer. Seguia-se um silêncio profundo. Depois, alguém se mexia no seu lugar, pigarreava, cuspia de lado e, por sua vez, começava: “Pois eu, certa vez, lá pros lados do Banhado Velho...”
E assim continuava, até completar a roda. Depois, quando terminava, o mais velho se levantava, calmamente, ajeitando as bombachas, e costumava dizer:
“Buenas, já são horas, daqui a pouco o galo vai cantar..."
E todos se levantavam e se despediam com fortes apertos nos braços e tapas nas costas - como se tivessem acabado de participar de rituais misteriosos e trocado mensagens sigilosas que a noite, o fogo e o campo tinham propiciado - e se afastavam, lentamente.
Certa vez, a conversa enveredou pras caçadas e pescarias, e foi um tal de contar causos de feitos espetaculares que, quando o seu Chico contou como pegou um jundiá enorme que tava dormindo em um recanto próprio do lagoão e, mesmo depois de levar o esporão na mão (e mostrava a cicatriz pra todos) carregou ele pra margem, segurando pelas guelras, e foi quando ouviu o bicho dizer que não era direito acordar ele assim da sua sesta, e o seu Chico, mais respeitoso que assustado, devolveu ele pra água – que um dos guris que estava ao meu lado, com pouco mais de vinte anos, desatou a rir, para minha vergonha e o constrangimento de todos.
Enquanto uns olhavam pra baixo e outros pra cima, o seu Chico gritou “Arre!”, pegou o guri pelo lenço do pescoço e gritou na cara dele: “Mas tu tá duvidando de mim, seu mijado?!” E se o qüera não tivesse atinado em dizer que estava rindo era do susto do jundiá ao ser acordado daquele jeito, a coisa teria ficado muito feia.
Meio aperreado, o seu Chico sentou de novo e foi quando o meu tio Pedro, que era liso de esperto, disse alto:
“Pois eu já falei até com capivara. E tá pra nascer o macho que duvide disso!”
Todos atentaram. Causo contado pelo meu tio era causo para ser lembrado para sempre.
O meu tio pigarreou, limpando a garganta, pediu mais um mate, sorveu uns dois goles e falou:
“Pois, certa feita eu estava numa roda que nem esta aqui; roda de causos, de mate e de canha”. Bebeu mais um gole do mate e continuou:
“Mas tinha chegado gente da cidade, gente boa, gente amiga, mas muito de contar prosa. E falavam de caçadas e de pescarias, e disso e daquilo, como se soubessem tudo do campo, e das armas que usavam e dos calibres que preferiam – esse tipo de coisa...”
Todos espicharam as orelhas. Ninguém gostava muito de gente da cidade, porque era metida a inventar estórias, e o causo do meu tio prometia. Até o guri que tinha rido estava mudo ao meu lado, cabisbaixo, mas atento. Meu tio olhou um por um e recomeçou, devagar:
“Foi quando eu aparteei. Disse pra eles que isso de matar os pobres dos bichinhos de Deus com arma era até covardia. Queria ver pegar à mão. Eles meio que tentaram rir, mas eu olhei sério e acrescentei: - amanhã cedo vou pegar uma capivara na unha.
“De manhãzita, encilhei o meu cavalo e segui a trote para o rio, umas duas léguas daqui. Era lá que as capivaras iam se dessedentar, quando acordavam. Quando voltei, perto do meio-dia, estava todo molhado e embarrado e trazia as botas numa das mãos. Todos já estavam inquietos, me esperando pro almoço.
“Um deles me perguntou:
“Matou a capivara, seu Pedro?
“Eu respondi: - Eu não disse que ia matar, disse que ia pegar à unha, e peguei.
“E ele: - E onde está o bicho?
“Olhei firme nos olhos dele e falei:
“Quando cheguei lá, de manhã cedo, o bando de capivaras já estava bebendo água. Deixei o cavalo pastando, ali perto, tirei as botas e entrei no rio, devagarito pra não espantar. Mas capivara é bicho manso, não se assusta assim no más. Olhei pra uma, olhei pra outra e escolhi a mais encorpada. Quando cheguei perto e peguei firme, mas sem machucar, ela me olhou nos olhos e disse:
“O que é isso, Pedro? Deu pra nos caçar, agora?
“Meio envergonhado, respondi:
“Foi uma aposta...
“Ela me olhou de novo e se afastou, devagar, tranquilita. Eu fiquei um pouco por ali, olhando pras capivaras e pras capivarinhas, tão mansas... Depois de um tempo molhando os pés e pensando na vida, voltei. E foi isso!...
“Ninguém falou mais nada. À tardinha - depois de conversarmos sobre tudo, menos caçadas e pescarias - foram embora. Foi assim.”
Tio Pedro parou de falar e todos ficaram quietos durante um bom tempo. Depois, aos poucos, nos levantamos e começamos a nos despedir, sem pressa. O galo já cantava. O seu Chico abraçou o tio Pedro com força e vi no seu rosto, no canto do olho, o que parecia ser uma lágrima. Ao meu olhar, ele disse: “É um cisco...” E passou a mão no rosto.
Foi assim.
• Jornalista e escritor.
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