quinta-feira, 15 de setembro de 2011







Ilustração: Thiago Cayres

12 years old
* Por Marcelo Sguassábia

I
Chamemos de “platô” aquele efeito áureo, a sensação boa do pileque propriamente dito. Pena ser efêmero demais, raramente vai além de dez minutos esse golden moment. E não adianta querer prolongá-lo. Está quase sempre entre o fim da primeira e o começo da segunda dose. Interessante a percepção da lindeza extrema que emana das coisas desimportantes, nesta fase do processo. Mesmo você, quem diria, acaba ficando lindo. Veja até onde pode chegar a alucinação da bebida...

II
Três ou quatro generosas bicadas e se instala o fator solidário, a ânsia de dar e receber calor humano, a qualquer preço. Sem que você tenha a menor possibilidade de controle, esse espírito natalino fora de época se esparrama por tudo e todos. Sobra até para o rato no ralo do quintal - a quem você não negaria um trago nem um abraço caloroso, fosse ele do seu tamanho e chegado numa birita. Vai um queijinho pra acompanhar, ratão velho de guerra?

III
Vamos de cowboy porque está frio. Você desliga do que interessa – as coisas enfadonhas sujeitas às leis de ação e reação, causa e efeito – como, por exemplo, deixar de pagar a parcela de financiamento do carro e ter suas garrafinhas de Buchanan’s confiscadas. A partir daí, você começa a entrar numas até com o rejunte do azulejo, filosofando longamente sobre o papel fundamental de suas vias lisas e pavimentadas para a locomoção segura das formigas caseiras. Você olha para o hominho de saiote do rótulo e se pergunta se é aquele cara desenhado a bico de pena quem engarrafou o bálsamo, ou quem seria o escocês dono da destilaria, ou porque os paraguaios são tão grosseiros em suas falsificações, ou o que faz o Natu Nobilis provocar furúnculos no rosto de seus apreciadores.

IV
A questão é que a sua autocrítica muda bastante depois do primeiro copo esvaziado, e aquela promessa de fazer da primeira a única dose fica na promessa. E do fugaz platô você escorrega pra fase xarope e decididamente torpe, onde tenta o resgate do estado de graça bebendo mais, e mais, e mais. É justamente essa a hora do seu pai chegar, com o mesmo bigode fino e o mesmo terno de linho da foto no criado-mudo, trazendo debaixo do braço uma penca de lembranças bem mais envelhecidas que os 12 anos do uísque. Ao lado vem seu avô, arrastando os chinelos e deixando um rastro de polvilho Granado pelo corredor onde você neste momento passa trançando as pernas, a caminho da geladeira e em busca de mais gelo. Sim, o gelo faz render mais o líquido precioso.

V
Você baixa os olhos. O livro sobre a mesa. A página misteriosa, a mais intrincada e hermética passagem da Clarice Lispector, uma que você marcou para tentar decifrá-la daqui a alguns anos, ganha entendimento tão elementar quanto um gibi do Chico Bento. Um sentido que só se anuncia com os neurônios assim, meditando em seus divãs. Isso é o que se passa enquanto o entorno flutua e parece sussurrar vozes de outros planos, a estranha certeza de estar a um fio da próxima dimensão. Você volta ao kilt do hominho da garrafa, a curiosidade aumenta e, já que o computador está à sua frente, você acessa o site do fabricante. O patrocinador da sua trip falando dele mesmo. A história, o portfólio de produtos, fale conosco. A realidade é movediça, o dedo de Deus mexe o drink onde você turbilhona como se estivesse dentro de uma máquina de lavar.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

Um comentário:

  1. Uma graça com maior profundidade, que chama a uma leve reflexão. Ou quem sabe a uma profunda análise existencial?
    Palavras chave são "torpor", "trip", e assim embarcamos e vamos viajando na onda etílica, com muito prazer, soluços e uma quase embriaguês.

    ResponderExcluir