Ilustração: Thiago Cayres
Esta é a sua vida
* Por Marcelo Sguassábia
- É daí que publicaram o anúncio "Sua vida inteira com preço pela metade"?
- Isso. Eu escrevo biografias por encomenda. Tenho quatro na fila, só pra esse mês.
- Mas essa oferta é pra todo mundo ou é só pra quem tem uma vidinha do tipo mais ou menos, sem muitas peripécias?
- Olha, tanto faz se a vida é da Dilma Rousseff ou da tia-avó dela, que ficou lá na Ucrânia.
- Bulgária.
- Isso, Bulgária. É indiferente, meu camarada.
- Então, mas pra aproveitar a promoção existe um limite de páginas?
- O meu sistema de cobrança é por vida, não por página. Caso o livro fique fininho, não tenho nada a ver com isso. Se a vida do sujeito é inexpressiva a culpa é do biografado, não do biógrafo. Agora, uma vida cheia de sobressaltos é mais trabalhoso, enquanto que uma vida sem muitos altos e baixos é mais tranquilo de fazer. De qualquer forma, não tem diferença de custo.
- Mas você concorda que, se eu tenho uma vida comum, eu não vou querer uma biografia, certo? Vou falar o quê? Que eu acordo, escovo os dentes, tomo café da manhã, vou trabalhar, volto pra casa, janto e vou dormir? Quem é que vai querer ler isso?
- Bom, se você pensa assim, então porque tá ligando?
- Isso é problema meu. O senhor faça o favor de ter mais educação com os seus clientes potenciais.
- Tá bem, me desculpe, é que você me ligou num momento meio conturbado. O velhinho que eu estou biografando está morre-não morre e a história toda ainda está patinando no capítulo 3. Mais exatamente na parte do bolo estragado da festa da crisma. E o pior é que o velho está com insuficiência respiratória severa. Eu tenho que ficar com o ouvido colado na boca seca do desgraçado pra ir ouvindo aos poucos o que ele fala. Daí então eu corro pro computador, escrevo aquilo que ele disse e volto pra ver se arranco mais alguma coisa antes que ele bata com as dez.
- Sei. Só que pra contratar os seus serviços eu preciso ver algum livro que o senhor tenha escrito, pra avaliar o estilo, sabe como é. Tenho que ver o que eu estou comprando.
- Sim, sim. Podemos dar um jeito, embora o meu nome não apareça como escritor por questões de contrato com o biografado. Pra todos os efeitos, é o sujeito que escreveu, entende? Escritor fantasma não tem portfólio.
- Certo, mas agora voltando ao orçamento. Como eu ainda estou muito bem disposto e não pretendo morrer tão cedo, mereço um desconto extra. Não dá pra comparar o trabalho que o senhor vai ter comigo com aquele que está tendo com o velhinho vai-não vai. Posso inclusive ir aí na sua casa, pra facilitar as coisas na hora de contar as histórias. Além disso o senhor deve estar meio a perigo, já que publicou seu anúncio num site de compras coletivas. A coisa anda feia pro lado do seu cheque especial, não anda não? Me vê aí o melhor preço à vista que o senhor pode fazer.
- Não estou matando cachorro a grito, não! Como disse, meu amigo, tem quatro na sua frente e a fila tem que andar. Portanto, se for continuar me esnobando, eu tenho mais o que fazer.
- Quanto, eu quero saber quanto sai a brincadeira...
- Então, tá. Vou dar o meu preço sim. Sabe quanto? Dois reais. Dois reais está bem pago, porque pelo jeito a sua vida é tão nula que não vai me dar trabalho nenhum. Não deve encher nem um gibi. Quando muito, um folhetinho desses que distribuem no semáforo.
- O quê????
- Se bobear, cabe tudo na frente. Não precisa nem do verso.
• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)
Esta é a sua vida
* Por Marcelo Sguassábia
- É daí que publicaram o anúncio "Sua vida inteira com preço pela metade"?
- Isso. Eu escrevo biografias por encomenda. Tenho quatro na fila, só pra esse mês.
- Mas essa oferta é pra todo mundo ou é só pra quem tem uma vidinha do tipo mais ou menos, sem muitas peripécias?
- Olha, tanto faz se a vida é da Dilma Rousseff ou da tia-avó dela, que ficou lá na Ucrânia.
- Bulgária.
- Isso, Bulgária. É indiferente, meu camarada.
- Então, mas pra aproveitar a promoção existe um limite de páginas?
- O meu sistema de cobrança é por vida, não por página. Caso o livro fique fininho, não tenho nada a ver com isso. Se a vida do sujeito é inexpressiva a culpa é do biografado, não do biógrafo. Agora, uma vida cheia de sobressaltos é mais trabalhoso, enquanto que uma vida sem muitos altos e baixos é mais tranquilo de fazer. De qualquer forma, não tem diferença de custo.
- Mas você concorda que, se eu tenho uma vida comum, eu não vou querer uma biografia, certo? Vou falar o quê? Que eu acordo, escovo os dentes, tomo café da manhã, vou trabalhar, volto pra casa, janto e vou dormir? Quem é que vai querer ler isso?
- Bom, se você pensa assim, então porque tá ligando?
- Isso é problema meu. O senhor faça o favor de ter mais educação com os seus clientes potenciais.
- Tá bem, me desculpe, é que você me ligou num momento meio conturbado. O velhinho que eu estou biografando está morre-não morre e a história toda ainda está patinando no capítulo 3. Mais exatamente na parte do bolo estragado da festa da crisma. E o pior é que o velho está com insuficiência respiratória severa. Eu tenho que ficar com o ouvido colado na boca seca do desgraçado pra ir ouvindo aos poucos o que ele fala. Daí então eu corro pro computador, escrevo aquilo que ele disse e volto pra ver se arranco mais alguma coisa antes que ele bata com as dez.
- Sei. Só que pra contratar os seus serviços eu preciso ver algum livro que o senhor tenha escrito, pra avaliar o estilo, sabe como é. Tenho que ver o que eu estou comprando.
- Sim, sim. Podemos dar um jeito, embora o meu nome não apareça como escritor por questões de contrato com o biografado. Pra todos os efeitos, é o sujeito que escreveu, entende? Escritor fantasma não tem portfólio.
- Certo, mas agora voltando ao orçamento. Como eu ainda estou muito bem disposto e não pretendo morrer tão cedo, mereço um desconto extra. Não dá pra comparar o trabalho que o senhor vai ter comigo com aquele que está tendo com o velhinho vai-não vai. Posso inclusive ir aí na sua casa, pra facilitar as coisas na hora de contar as histórias. Além disso o senhor deve estar meio a perigo, já que publicou seu anúncio num site de compras coletivas. A coisa anda feia pro lado do seu cheque especial, não anda não? Me vê aí o melhor preço à vista que o senhor pode fazer.
- Não estou matando cachorro a grito, não! Como disse, meu amigo, tem quatro na sua frente e a fila tem que andar. Portanto, se for continuar me esnobando, eu tenho mais o que fazer.
- Quanto, eu quero saber quanto sai a brincadeira...
- Então, tá. Vou dar o meu preço sim. Sabe quanto? Dois reais. Dois reais está bem pago, porque pelo jeito a sua vida é tão nula que não vai me dar trabalho nenhum. Não deve encher nem um gibi. Quando muito, um folhetinho desses que distribuem no semáforo.
- O quê????
- Se bobear, cabe tudo na frente. Não precisa nem do verso.
• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)
Muitas e boas risadas você me proporcionou, Marcelo. E olha que eu estava precisando, pois ando num chororô, que só vendo. No caso desse escritor, só de choro ele já me encheria um capítulo. Obrigada pela graça desse estilo só seu de zombar da nossa pequenez e com isso alegrar o nosso dia.
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