Concerto no cemitério
* Por Marco Albertim
O caixão está à beira da cova. O choro não deixa dúvida: Santiago deixara mais de uma viúva. A comborça, junto às três filhas, chora a morte do homem que lhe provera a despensa. As moças, todas com o cetim comprado com o dinheiro da algibeira dele, choram a orfandade nunca pensada; não são tão moças, posto que a noção da perda expõe nos olhos a dor um dia pressentida.
Estão a uma quadra do caixão fechado. Mãe e filhas forçando a dor para entrever, de Santiago, um dente tisnado de nicotina; no juízo o vulto escuro de sua pele, amaciado no paletó de linho cinza de uso diário. Vulto vivo, sem se mostrar, com força para drenar bile da lágrima. Querem se aproximar, só uma dúzia de túmulos no caminho, já chorados, mudos, sem demanda de lutos.
O vaso de terra, àquela altura nos joelhos dos coveiros, está cercado por familiares de Santiago. A viúva pomposa, afeita a enterros, cobrira-se do vestido preto; somente uma filha, a mais moça, usa um vestido branco com enfeites de tulipas negras. Não se casara, mesmo com o rosto sulcado por espinhas com as tensões do sexo. As outras, casadas, têm o marido de lado. Não choram a perda do provedor da despensa, sentem-se como um coto de vela com o lume se desbastando. Santiago, toda a vida, lhes dera apoio aos propósitos de fêmeas. A mãe, bonita na juventude, desterrara-se no meio das filhas, opondo-se ao pretendente de cada uma, sem razões ou por razões inventadas; as desrazões cresceram com as suspeitas de que Santiago se embiocara com outra. A primeira filha de Santiago, desentranhada de outro ventre, deixara-a de todo enjoada. Já em suas filhas, do ventre legítimo, viu-se um riso de apoio a Santiago. As filhas de Odília, mudas em relação às incursões extraconjugais do pai, assentiram com vagos acenos às meias-irmãs. Terezinha, a que não se casara, acudira a mãe sem nada dizer.
O vaso afunda sob os pés dos coveiros. As pás, com lâminas afiadas, chocam-se nos cascalhos à toa da terra úmida. A sonoridade é nutriente aos ouvidos, atenua a insanidade de deixar um corpo, antes quente, à mercê dos vermes.
Isaura Matias e as filhas acodem-se. Sem luto nas vestes, inda que o pesar fundo infundindo mais dor nas filhas, mede a distância entre a bastardia dela, das filhas, e a certidão de casamento de Odília. Os anos encovaram-lhe os olhos, maturando-os no encolhimento da feliz, nutrida comborçaria. Santiago, no costume de uma vintena de anos, de fechar a alfaiataria e jantar com Odília e as filhas; depois do primeiro cigarro, levantar da cadeira para nutrir-se com Isaura Matias e as filhas. Não as via durante o dia. À noite, sentado a uma cadeira de balanço reservada a ele, acudia à demanda de paternidade de Isaurinha, Cândida e Felícia. Isaurinha, a primeira a sentar-se no colo do pai, crendo-se mais prendada do que todas as filhas de Santiago. Tirava-lhe o paletó para rodear os braços na cintura dele, auscultando-o, absorvendo o cheiro do cigarro. ”Por que o senhor não vem me ver de dia?” – “Porque estou trabalhando.” Na casa sem forro, as telhas dando conta de musgos, mofos indistintos, as moças distinguiam vultos de frades mortos. O casario velho, com paredes geminadas, avistando os fundos do convento onde religiosos sobrevivem à custa de jejuns, de rezas sussurradas. Não saem. A vizinhança julga-os entre os mortos, porquanto se enterram longe dos incréus, num cemitério próprio, com restos de túmulos, amontoando cruzes podres. “Tenho medo de dormir sozinha. Já me confessei com frei Celino. Mas ele não aparece mais na igreja do convento. Tenho medo que ele esteja morto com meus segredos.” O medo, no juízo tenro de Isaurinha, não podia ser vencido a não ser ouvindo a voz cava de Santiago. Isaura Matias, já velha, descrente de defuntos errantes, com a voz sumida no fundeado dos olhos, sofria tanto quanto a filha mais nova; por impotência, por conformação. Vendo Santiago com as filhas no regaço, crera-as bem-criadas. Depois, com ele se despedindo para voltar à casa de Odília, a iminência do vácuo invadia-a, invadia-lhes os sentidos apurados. Uma noite, Santiago dormira na cadeira com o descuido de Isaurinha que saíra de seu colo. No costume da resignação, Isaura Matias quisera sacudir-lhe o ombro. Isaurinha e as duas irmãs mais velhas, reféns dos propósitos da mãe, seguiram-na no gesto; só na intenção, porque Isaura Matias não se livrara do sonho de mover-se como matriarca no nicho esquecido da casa comprada por Santiago; inda que por só uma noite, velaria-o no culto ao marido que não se casara com ela. Mandou as filhas se recolherem ao quarto, às camas vizinhas, às rezas que as manteriam juntas. Pôs um travesseiro fino na nuca do parelho, com cuidados consuetudinários. Dormiu de seu lado, numa cadeira igual à dele. Inda que vez ou outra soltando roncos, atou os ruídos do sono à ordem que impusera ao juízo. O dia flagrou-os sem sustos, só o incômodo de uma fresta aqui e ali deixando pingar um fio de luz do sol. Depois do café, nos fundos da cozinha, ele deixou-se ficar por mais tempo para fumar o cigarro. A fumaça, misturando-se ao vapor da chaleira com água fervendo no fogão a carvão, cobriu o choro descendo de um olho; só de um, porque também ele tinha o pressentimento do vácuo; o outro pressentira o tédio de voltar à alfaiataria, ouvir a conversa de velhos como ele, insossos, espreitando o fim.
Saiu de lá deixando a algibeira nua, para prover a despensa de Isaura Matias; e o guarda-roupa das filhas.
Onde estão, Isaura Matias, Isaurinha, Cândida e Felícia veem as pernas dos coveiros sumindo à beira do vaso. Odília chora... Não de saudade, chora porque não há mais chance de ter o marido que não teve. Santiago, por certo, fechara os olhos mirando a filha caçula. Não Terezinha, que mesmo sendo sua caçula de anos carregados, mantém-se refém ao medo dos homens. Odília reza segurando as contas do terço; enquanto não puserem a derradeira pá de terra na cova do morto, as contas seguirão os braços dos coveiros. Maria do Amparo, a filha mais velha, é gorda. De pé, ali, graças ao prumo dos braços do marido. Incorporava espíritos nas sessões guiadas pelo pai; ao final, no recobro da memória, ele lhe dizia o monólogo dos transes. Choro convulso, os olhos abundantes. “Vai! Mestre Santiago! Vai! Eu recebo o teu espírito ainda hoje!”
Odília guardara, da juventude, o retrato na moldura, na parede da sala, olhando para a porta, para as janelas da frente da casa. O rosto de contornos finos, sem severidade nem incúria, flagrado na pose de quem não se dá conta da própria beleza. O corpo do marido fora posto na cama, no quarto contíguo. Ela se trancara com Maria do Amparo e com Terezinha – Terezinha cheia de temores. Puseram o defunto nu, frio, o corpo ainda mole, trazido pela ambulância. Vestiram-no com o paletó e a calça de linho, familiar a seus olhos, aos de Isaura Matias e das filhas. Na sala, o defunto enrijara. Com velas acesas, flores no caixão, o rosto escuro de Santiago contrastando com os cravos brancos. A conversa regada a café com bolachas tangeu intenções carpideiras.
Do outro lado da rua do Rosário, Isaura Matias e as filhas não se atreveram a descer a calçada. A placa com o nome da rua, acima de suas cabeças, ilustrando a perda das duas viúvas. A vizinhança notou-lhes a espreita acuada. Isaurinha dissera que entraria na casa para ver o pai pela última vez; pequena, não seria percebida por Odília. A mãe segurou-a pelo braço. “Você é doida! Nós vamos atrás do enterro...” Seguiram o cortejo lá atrás, com direito ao choro longe. Um ou outro, à frente, olhando para trás, medindo a distância de seus passos para os de Odília.
No portão estreito do cemitério, esperaram a comitiva de Odília entrar. Quando todos, entre lápides e covas sem alvenaria, se acercaram do vaso que abocanharia o defunto, pararam sob um poste ao lado de um túmulo. A cada conta do rosário vencida, um episódio ocupava-lhes o juízo.
Os coveiros sobem. O caixão é posto no fundo da cova, por uma corda em cada uma das pontas. As pás devolvem a terra ao buraco. Quando os coveiros, com as costas da lâmina das pás, socam a terra para enfiar a cruz, Odília e as filhas olham para o lado. Isaura Matias, Isaurinha, Cândida e Felícia correm em direção a elas. O choro é mais que uma dor, é um concerto. As mulheres se abraçam, os olhos se promiscuem.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
O caixão está à beira da cova. O choro não deixa dúvida: Santiago deixara mais de uma viúva. A comborça, junto às três filhas, chora a morte do homem que lhe provera a despensa. As moças, todas com o cetim comprado com o dinheiro da algibeira dele, choram a orfandade nunca pensada; não são tão moças, posto que a noção da perda expõe nos olhos a dor um dia pressentida.
Estão a uma quadra do caixão fechado. Mãe e filhas forçando a dor para entrever, de Santiago, um dente tisnado de nicotina; no juízo o vulto escuro de sua pele, amaciado no paletó de linho cinza de uso diário. Vulto vivo, sem se mostrar, com força para drenar bile da lágrima. Querem se aproximar, só uma dúzia de túmulos no caminho, já chorados, mudos, sem demanda de lutos.
O vaso de terra, àquela altura nos joelhos dos coveiros, está cercado por familiares de Santiago. A viúva pomposa, afeita a enterros, cobrira-se do vestido preto; somente uma filha, a mais moça, usa um vestido branco com enfeites de tulipas negras. Não se casara, mesmo com o rosto sulcado por espinhas com as tensões do sexo. As outras, casadas, têm o marido de lado. Não choram a perda do provedor da despensa, sentem-se como um coto de vela com o lume se desbastando. Santiago, toda a vida, lhes dera apoio aos propósitos de fêmeas. A mãe, bonita na juventude, desterrara-se no meio das filhas, opondo-se ao pretendente de cada uma, sem razões ou por razões inventadas; as desrazões cresceram com as suspeitas de que Santiago se embiocara com outra. A primeira filha de Santiago, desentranhada de outro ventre, deixara-a de todo enjoada. Já em suas filhas, do ventre legítimo, viu-se um riso de apoio a Santiago. As filhas de Odília, mudas em relação às incursões extraconjugais do pai, assentiram com vagos acenos às meias-irmãs. Terezinha, a que não se casara, acudira a mãe sem nada dizer.
O vaso afunda sob os pés dos coveiros. As pás, com lâminas afiadas, chocam-se nos cascalhos à toa da terra úmida. A sonoridade é nutriente aos ouvidos, atenua a insanidade de deixar um corpo, antes quente, à mercê dos vermes.
Isaura Matias e as filhas acodem-se. Sem luto nas vestes, inda que o pesar fundo infundindo mais dor nas filhas, mede a distância entre a bastardia dela, das filhas, e a certidão de casamento de Odília. Os anos encovaram-lhe os olhos, maturando-os no encolhimento da feliz, nutrida comborçaria. Santiago, no costume de uma vintena de anos, de fechar a alfaiataria e jantar com Odília e as filhas; depois do primeiro cigarro, levantar da cadeira para nutrir-se com Isaura Matias e as filhas. Não as via durante o dia. À noite, sentado a uma cadeira de balanço reservada a ele, acudia à demanda de paternidade de Isaurinha, Cândida e Felícia. Isaurinha, a primeira a sentar-se no colo do pai, crendo-se mais prendada do que todas as filhas de Santiago. Tirava-lhe o paletó para rodear os braços na cintura dele, auscultando-o, absorvendo o cheiro do cigarro. ”Por que o senhor não vem me ver de dia?” – “Porque estou trabalhando.” Na casa sem forro, as telhas dando conta de musgos, mofos indistintos, as moças distinguiam vultos de frades mortos. O casario velho, com paredes geminadas, avistando os fundos do convento onde religiosos sobrevivem à custa de jejuns, de rezas sussurradas. Não saem. A vizinhança julga-os entre os mortos, porquanto se enterram longe dos incréus, num cemitério próprio, com restos de túmulos, amontoando cruzes podres. “Tenho medo de dormir sozinha. Já me confessei com frei Celino. Mas ele não aparece mais na igreja do convento. Tenho medo que ele esteja morto com meus segredos.” O medo, no juízo tenro de Isaurinha, não podia ser vencido a não ser ouvindo a voz cava de Santiago. Isaura Matias, já velha, descrente de defuntos errantes, com a voz sumida no fundeado dos olhos, sofria tanto quanto a filha mais nova; por impotência, por conformação. Vendo Santiago com as filhas no regaço, crera-as bem-criadas. Depois, com ele se despedindo para voltar à casa de Odília, a iminência do vácuo invadia-a, invadia-lhes os sentidos apurados. Uma noite, Santiago dormira na cadeira com o descuido de Isaurinha que saíra de seu colo. No costume da resignação, Isaura Matias quisera sacudir-lhe o ombro. Isaurinha e as duas irmãs mais velhas, reféns dos propósitos da mãe, seguiram-na no gesto; só na intenção, porque Isaura Matias não se livrara do sonho de mover-se como matriarca no nicho esquecido da casa comprada por Santiago; inda que por só uma noite, velaria-o no culto ao marido que não se casara com ela. Mandou as filhas se recolherem ao quarto, às camas vizinhas, às rezas que as manteriam juntas. Pôs um travesseiro fino na nuca do parelho, com cuidados consuetudinários. Dormiu de seu lado, numa cadeira igual à dele. Inda que vez ou outra soltando roncos, atou os ruídos do sono à ordem que impusera ao juízo. O dia flagrou-os sem sustos, só o incômodo de uma fresta aqui e ali deixando pingar um fio de luz do sol. Depois do café, nos fundos da cozinha, ele deixou-se ficar por mais tempo para fumar o cigarro. A fumaça, misturando-se ao vapor da chaleira com água fervendo no fogão a carvão, cobriu o choro descendo de um olho; só de um, porque também ele tinha o pressentimento do vácuo; o outro pressentira o tédio de voltar à alfaiataria, ouvir a conversa de velhos como ele, insossos, espreitando o fim.
Saiu de lá deixando a algibeira nua, para prover a despensa de Isaura Matias; e o guarda-roupa das filhas.
Onde estão, Isaura Matias, Isaurinha, Cândida e Felícia veem as pernas dos coveiros sumindo à beira do vaso. Odília chora... Não de saudade, chora porque não há mais chance de ter o marido que não teve. Santiago, por certo, fechara os olhos mirando a filha caçula. Não Terezinha, que mesmo sendo sua caçula de anos carregados, mantém-se refém ao medo dos homens. Odília reza segurando as contas do terço; enquanto não puserem a derradeira pá de terra na cova do morto, as contas seguirão os braços dos coveiros. Maria do Amparo, a filha mais velha, é gorda. De pé, ali, graças ao prumo dos braços do marido. Incorporava espíritos nas sessões guiadas pelo pai; ao final, no recobro da memória, ele lhe dizia o monólogo dos transes. Choro convulso, os olhos abundantes. “Vai! Mestre Santiago! Vai! Eu recebo o teu espírito ainda hoje!”
Odília guardara, da juventude, o retrato na moldura, na parede da sala, olhando para a porta, para as janelas da frente da casa. O rosto de contornos finos, sem severidade nem incúria, flagrado na pose de quem não se dá conta da própria beleza. O corpo do marido fora posto na cama, no quarto contíguo. Ela se trancara com Maria do Amparo e com Terezinha – Terezinha cheia de temores. Puseram o defunto nu, frio, o corpo ainda mole, trazido pela ambulância. Vestiram-no com o paletó e a calça de linho, familiar a seus olhos, aos de Isaura Matias e das filhas. Na sala, o defunto enrijara. Com velas acesas, flores no caixão, o rosto escuro de Santiago contrastando com os cravos brancos. A conversa regada a café com bolachas tangeu intenções carpideiras.
Do outro lado da rua do Rosário, Isaura Matias e as filhas não se atreveram a descer a calçada. A placa com o nome da rua, acima de suas cabeças, ilustrando a perda das duas viúvas. A vizinhança notou-lhes a espreita acuada. Isaurinha dissera que entraria na casa para ver o pai pela última vez; pequena, não seria percebida por Odília. A mãe segurou-a pelo braço. “Você é doida! Nós vamos atrás do enterro...” Seguiram o cortejo lá atrás, com direito ao choro longe. Um ou outro, à frente, olhando para trás, medindo a distância de seus passos para os de Odília.
No portão estreito do cemitério, esperaram a comitiva de Odília entrar. Quando todos, entre lápides e covas sem alvenaria, se acercaram do vaso que abocanharia o defunto, pararam sob um poste ao lado de um túmulo. A cada conta do rosário vencida, um episódio ocupava-lhes o juízo.
Os coveiros sobem. O caixão é posto no fundo da cova, por uma corda em cada uma das pontas. As pás devolvem a terra ao buraco. Quando os coveiros, com as costas da lâmina das pás, socam a terra para enfiar a cruz, Odília e as filhas olham para o lado. Isaura Matias, Isaurinha, Cândida e Felícia correm em direção a elas. O choro é mais que uma dor, é um concerto. As mulheres se abraçam, os olhos se promiscuem.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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