quarta-feira, 21 de setembro de 2011



Literatura sem rótulos

O escritor, não importa em que lugar tenha nascido, é fruto da sua cultura, das experiências pessoais que teve, das pessoas que conheceu e com que se relacionou, do que viu, ouviu, leu etc.etc. etc. Essa afirmação parece óbvia, e de fato é, mas muitas pessoas não entendem. Acham que o fato de determinados autores concentrarem-se em determinados temas, criarem personagens de algumas nacionalidades específicas, via de regra imigrantes em outros países, que estejam comprometidos com causas específicas. Às vezes, de fato, estão. E se estiverem, fazem mau uso da literatura. No meu entendimento, são maus escritores, embora seus textos beirem a perfeição. Mas, na maior parte das vezes, não estão.
Veja-se o caso do consagrado escritor Saul Bellow, nascido em Lachine, no Canadá, em 10 de junho de 1915 e que morreu em 5 de abril de 2005, na cidade norte-americana de Brookline. Vários dos seus livros, notadamente os escritos e publicados logo após o término da Segunda Guerra Mundial, têm, como personagens, imigrantes judeus nos Estados Unidos. Narram peripécias e circunstâncias de vida de pessoas que,, perseguidas nos seus países de origem (e não somente pelos nazistas na Alemanha, mas por tantos e tantos regimes e governos), encontraram, na nova terra, circunstâncias propícias para reconstruírem suas vidas, com liberdade e dignidade, e para, sobretudo, prosperar.
Dada essa sua característica, foi (e ainda é por parte de muitos críticos e historiadores de literatura) “rotulado” de escritor judaico-americano. Aliás, não apenas ele, mas vários outros, da mesma origem, e que adotam a mesma temática. Acho isso além de preconceituoso, desnecessário. E um tanto tolo. Não gosto de rotular pessoas e não concordo com essa rotulagem, por saber o que se esconde por trás dela. Esconde-se um ranço de forte preconceito, uma tentativa dissimulada de diminuir o sucesso de alguém que teve competência e méritos para obtê-lo. A literatura não comporta, e jamais deveria comportar, rótulos.
Não que tratar Saul Bellow de escritor judaico-americano de alguma forma diminua sua importância ou competência. Vejo nisso, todavia, uma tentativa (felizmente frustrada) de fazê-lo. Os méritos desse magnífico escritor foram ampla, internacional e justamente reconhecidos com a outorga do Prêmio Nobel de Literatura de 1976. Isso basta, ou deveria bastar.
Em entrevista que concedeu à revista “Brasil-Israel”, na edição de maio de 1979, esse assunto foi trazido à baila. O entrevistador perguntou-lhe o que achava dessa distinção entre a literatura americana e a literatura “judaico-americana”.
Saul Bellow respondeu: “Nos Estados Unidos, os escritores judeus e não judeus não vêem as coisas por esse prisma. No que me diz respeito, sou, acima de tudo, um escritor americano. Um escritor americano de origem judaica. Meus pais imigraram para os Estados Unidos em 1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Se estivesse interessado em ser um escritor judeu, não teria, na minha infância, ido à biblioteca pública para ler Theodore Dreiser e Sherwood Anderson, mas teria estudado o Misná. Mas o fato é que fui ler esses autores e não Sholem Aleijem e I. L. Peretz. Então, como posso ser um escritor judeu? Sou o que sou. Estou certo de que os outros me vêem mais claramente do que eu próprio... e se os demais têm uma descrição minha mais fidedigna do que eu, não posso fazer mais nada além de conformar-me”.
Nada mais lógico, como se vê. Saul Bellow criou tantos personagens de origem judaica e narrou histórias de emigrantes dessa etnia porque essa era a sua realidade. Foi criado nesse meio. Seus pais eram judeus. Isso fica mais claro ainda na resposta à pergunta seguinte dessa entrevista. O entrevistador indagou-lhe: “Como você explica a circunstância de que seus livros, entre outras coisas, contêm mais do que os de qualquer outro escritor americano, uma galeria de tipos judaicos?”
E o escritor respondeu, com lógica, clareza e sinceridade: “Acho que o que me diferencia dos outros escritores judeus da América é que fui criado no seio de uma família oriunda do leste da Europa, onde o idioma falado era o idish. Em casa, falávamos idish, inglês e russo. Além disso, participei de um jéder. E esse foi o ambiente onde fui criado. Por outro lado, outros escritores judaico-americanos não tiveram essa vivência direta. Eles, praticamente, não sabem idish. Seus conhecimentos judaicos são muito escassos. Só as pessoas que sofrem uma influência negativa ou a pressão da guerra e do fascismo podem dizer: este é um escritor judeu. Essa posição se apóia também na dos outros do outro lado da barricada. Quando a maioria protestante da América começou a perder se domínio sobre a vida literária e cultural, quando começou a sentir seu próprio declínio, começou a se interessar por nós como escritores judeus”.
Como se vê, uma explicação objetiva, lógica e sem rodeios. Ademais, Saul Bellow não tratou “só” de temas judaicos e nem criou “apenas” personagens dessa origem. Por exemplo, é preciso lembrar que esse escritor foi tido e havido, por muito tempo, como o grande cronista de Chicago, cidade em que se fixou desde muito criança e que retratou com perícia e indisfarçável ternura. Embora sejam obras ficcionais, seus romances retratam a caráter cinco décadas da história contemporânea norte-americana, da depressão da década de 30, até a imersão desse país como a única superpotência mundial, econômica, política e militar do século XX.
Claro que, como idealista, perpassa, por todos os seus livros, uma crítica às distorções de várias espécies dessa sociedade tão complexa (e dividida), como o materialismo exacerbado, o egoísmo arrogante e a profunda divisão social, entre outras, características ainda presentes – que na verdade parecem acentuar-se mais e mais neste século XXI – desse gigantesco e complexo país.
Reitero que não vejo nada de mais no mero rótulo aposto a Saul Bellow, de escritor judaico-americano. Não há, no meu modo de entender as coisas, nem mérito e nem demérito no fato de alguém ser judeu (ou árabe, ou samoano, ou filipino ou de que nacionalidade for). O que me incomoda, e que repudio, ´é a carga de preconceito que há por trás dessas rotulações. E essa doença comportamental, essa manifestação estúpida, que nunca foi extirpada, em tempo algum, da alma humana, já causou (e potencialmente é capaz de ainda causar) muitas desgraças. Ademais, o papel da literatura nunca foi (pelo menos não deve ser jamais) o de separar pessoas e povos mediante instigação do ódio.

Boa leitura.

O Editor.




Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Um comentário:

  1. "Não há, no meu modo de entender as coisas, nem mérito e nem demérito no fato de alguém ser judeu (ou árabe, ou samoano, ou filipino ou de que nacionalidade for). " Uma grande frase, Pedro.

    ResponderExcluir