terça-feira, 20 de setembro de 2011



Volta às origens


O escritor – qualquer um que se preze – é uma colcha de retalhos de influências. É influenciado pelas experiências de infância, pela educação que recebeu, pelo ambiente em que foi criado e em que vive, pelas pessoas com as quais se relaciona, por sua capacidade de observação, pelas oportunidades de acesso aos meios de informação e... sobretudo pelos livros, mais especificamente autores, que lê. É como uma espécie de calidoscópio. A cada giro do tubo que caracteriza esse objeto, experimenta uma metamorfose e já é diferente do que era antes de alguém girar essa engenhoca cheia de vidros coloridos.

Para ser mais exato, devo admitir que todas as pessoas, não importa o que façam, sofrem essas influências. E por elas serem diversas e, principalmente, aleatórias, ninguém é exatamente igual a ninguém. Pode haver, até, muitos parecidos. As semelhanças aumentam ainda mais até ficarem próximas da igualdade (no caso dos gêmeos univitelino principalmente) mas são insuficientes. Iguais, iguais mesmo, jamais as pessoas, quaisquer pessoas, serão. Mesmo que sejam clones uma da outra, ou seja, cópias rigorosamente exatas.

Como todo mundo, principalmente como todo escritor, sou, também, colcha de retalhos de influências, notadamente dos autores que tive o privilégio de ler. Ou, valendo-me da metáfora preferida, sou esse calidoscópio, permanentemente mutável, que citei. A cada dia sou diferente do que era na véspera, embora parecendo o mesmo e guardando muitas das características anteriores que fazem parecer que não mudei. Mas mudei. De todas as influências que sofri, desde a tenra infância, uma permanece marcante e segue ditando meus passos pelos intrincados caminhos da literatura. Quem me lê há bom tempo sabe quem foi esse escritor. É ele mesmo, Jorge Luís Borges.

Recorro, amiúde, a ele todas as vezes que as temidas “crises de criatividade” me atingem subreptícia e covardemente, ou que simplesmente me ameaçam, e com isso, retomo o caminho que me tracei neste mundo complexo, frustrante e difícil, que é o da literatura. Tenho 50% das obsessões de Borges. Quanto à metade faltante, não se trata de divergir do mestre. Simplesmente, não me interesso por ela. Afinal, posso um dia, até, quem sabe, tornar-me grosseiramente semelhante a esse escritor. Igual, por mais que queira essa bênção, jamais serei. Nunca seria, mesmo que fosse seu clone.

Borges acentuou, em um de seus textos: “Na verdade, tudo isso corresponde a obsessões de minha infância. Os espelhos, os labirintos, os tigres, as armas brancas. E creio que isso é tudo, não tenho outros temas”. Modéstia dele. Tinha outros, sim. E que temas! Da minha parte, sou obcecado pelo tempo, simbolizado pelo relógio (qualquer que ele seja) e pela memória. Não que o escritor argentino não o fosse. Todavia, não confessou nunca que era. Mas não compartilho e nunca compartilhei sua obsessão por tigres e por armas brancas. Por que? Porque nenhum dos dois me diz nada. Ambos não me sensibilizam por nenhuma razão. Nossa obsessão comum, portanto, é por espelhos e por labirintos.

Como Borges, sempre fui (desde tenra infância), sou e provavelmente serei, enquanto meus olhos tão cansados permitirem, compulsivo leitor. Daí haver me tornado, sem nem ao menos forçar a barra, num processo automático e natural, escritor. Bom? Mau? Razoável? Não sei! Trata-se de julgamento que não me compete, impossível de eu fazer com a devida e requerida isenção. Deixo essa conclusão para os que me lêem.

Borges foi, antes que a cegueira o sacaneasse e lhe suprimisse a possibilidade de fazer o que mais apreciava na vida, ávido e compulsivo leitor. E justificou: “Sem leitura não se pode escrever”. Claro que não atribuiu a ela toda a responsabilidade pela boa escrita. Acrescentou: “Tampouco sem emoção, pois que a literatura não é, certamente, um jogo de palavras. É muito mais. Eu diria que a literatura existe através da linguagem, ou melhor, ‘apesar’ da linguagem”.

Borges abordou, em muitas e muitas ocasiões, questões atinentes à sua (e à minha) vocação para as letras. Como, por exemplo, esta declaração a propósito, feita em uma entrevista: “O escritor vive como escritor. A tarefa de ser poeta não se realiza num horário fixo: ninguém é poeta das oito ao meio-dia e das duas às seis. O poeta é poeta sempre e se vê continuamente assaltado pela poesia. Imagino que isso aconteça também com o pintor, que se sente assediado pelas cores e formas; ou com o músico, que se sente envolvido pelo estranho mundo dos sons (o mais estranho mundo das artes) e assediado por melodias, por dissonâncias”.

Todavia, meu guru não dava toda essa importância a esse talento criativo de que era dotado. Modéstia? Não! Realismo. Consciência do que fazia e porque se dedicava a essa atividade. Escreveu: “Creio que os escritores somos amanuenses de algo secreto, que se pode chamar, segundo a tradição homérica, de “musa”; segundo a tradição hebréia, “ruach”, o “espírito”; ou segundo a fria mitologia moderna, “inconsciente” ou “subconsciente”; ou segundo a bela expressão do grande poeta irlandês William Buttler Yeats, a “grande memória”. Sim, amigos, é isso o que somos. “Amanuenses de algo secreto”.

Apesar de nossa aparência não lembrar, sequer remotamente, o planeta que habitamos – achamo-la bela e harmoniosa; mas será que algum hipotético ET, inteligente e com aguçado critério estético, que tivesse o aspecto que para nós fosse monstruoso, mas que, por sua vez, nos achasse monstros para seus padrões, teriam a mesma opinião? Certamente que não! – somos uma espécie de representação em miniatura da Terra que nos acolhe e possibilita viver. Pelo menos nosso rosto assim o sugere, dado o formato esférico da nossa cabeça.

Borges observou isso, mas não dessa forma tosca e imperita com que eu fiz. Escreveu o seguinte, numa espécie de parábola: “Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que este paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto”.

Por isso, quando me sinto vazio de idéias, com a tal (e temida) “crise de criatividade” batendo-me à porta, ou então já instalada, esqueço minhas outras tantas influências e retorno à origem. Volto às minhas raízes, às motivações que me travestiram em escritor. Recorro a Borges, e as coisas, subitamente, entram no devido foco. Volto à normalidade, até que nova crise me ameace desestabilizar.


Boa leitura.

O Editor.

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