quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010




Vestindo e cozinhando a verdade

* Por Mara Narciso

Alguém pode ser incisivo em suas colocações, falando com firmeza e convicção, mostrando seus pontos de vista com ênfase, racionalidade, sem enfeitar a realidade. Os que agem assim são vistos como pessoas frias, às vezes até grosseiras, embora corajosas e seguras. Quem é realista apresenta-se com estilo em várias gradações. Poderá desviar-se levemente para um lado ou para o outro. Enquanto uns são mansos para contar exatamente como as coisas são, na outra ponta há quem seja ríspido e até mesmo mal-educado. Ser amante da realidade pode ser fácil para quem age assim, mas pode ser penoso para quem o ouve, especialmente os sensíveis, que preferem a verdade em doses menores, pouco a pouco, com grandes tempos e preparos.

Há os ouvintes que gostam de levar a pancada de uma única vez, mas boa parte, quem sabe a maior delas, prefere receber as notícias boas à vista e as ruins a prestação. O desacordo se dá quando estão cara a cara alguém que gosta de falar de chofre, e outro que quer parcimônia no relato. A dificuldade na comunicação vai acontecer e os dois lados ficarão frustrados. Tantos se arrependem de ter falado de um jeito mais duro, e principalmente quando acabam por ofender um amigo. Podem passar horas tentando resgatar a palavra mal falada, mas terá sido tarde.

Saber narrar acontecimentos ruins, uma constante nas nossas vidas, é uma arte, principalmente quando se trata de diagnósticos onde ter esperança e fé alteram o resultado do tratamento. Somos apenas humanos e descobrir que temos uma doença grave que nos ameaça desestabiliza o mais seguro dos mortais. Enquanto há quem diga que quer saber tudo, outros dizem exatamente o oposto: quero mais é me esquecer que tenho isso. Conversando com a pessoa, procurando descobrir suas características psicológicas mais marcantes, ainda assim, algumas vezes não temos o conhecimento suficiente, não sendo possível saber o quanto ela aguenta conhecer a verdade.

Para contar um desastre fatal ou uma morte inesperada deveria ter curso preparatório. Já há, mas tempos atrás era na raça. Dar má notícia, principalmente de morte de pessoa jovem que não estava doente, é complexo para ambos os lados. Alguns acham que têm de sobra o famigerado bom-senso, mas o que é isso? O julgamento é individual, não universal. As culturas possuem valores diversos, e a mentira pode ser importante em alguns momentos. Mas o mal que vem dela pode ser ainda pior.

Uma senhora idosa e com problemas mentais teve dela ocultado que seu filho mais novo estava com infecção urinária. A evolução foi ruim, e estando grave, em quadro séptico, foi levado ao CTI. Com a doença ainda oculta, a filha precisou convidar a mãe para o enterro do rapaz que estava inacreditavelmente morto. Saber desde o começo não teria sido menos traumático?

Uma mescla de verdade e de sonho precisa existir em determinadas horas. Nesses casos, contar de forma amena, dourando a pílula, amenizando os acontecimentos, falando por etapas, dará tempo de a pessoa se preparar para a fase final. No meio do relato, o ouvinte busca nas suas ferramentas psíquicas, condições de tolerar a situação. Dessa forma conseguirá subsistir ao fato trágico. Boa parte de nós não consegue suportar a verdade nua e crua. Então é trazer a vestimenta e acender o fogo. Parece dar mais certo.

* Médica endocrinologista, acadêmica de oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”




7 comentários:

  1. Mara, por mais que doa
    prefiro sempre a verdade...até para
    melhor superar as dores e os traumas.
    Beijos

    ResponderExcluir
  2. Também opto pela verdade. É claro que tudo pode ser dito de forma amena, mas o melhor é saber, sempre que necessário.

    ResponderExcluir
  3. Prefiro que nada me digam. Aliás, jamais vou a médicos e, se houver algum hospital em meu caminho, mudo de calçada. Conversar sobre doenças, então, nem pensar! Ou vivo na ilusão ou vivo na ilusão: não há, para mim, qualquer outra maneira suportável de viver.

    ResponderExcluir
  4. Às vezes a verdade, às vezes meia verdade, às vezes a mentira - se benéfica. Acho que todos são recursos válidos, dependendo do caso. Há que se ter critério e responsabilidade, sempre. Parabéns, Doutora Mara, por mais um texto - este sim - pleno de verdade. Abraços.

    ResponderExcluir
  5. Difícil aceitar a morte. Geralmente ninguém aceita. É a coisa mais certa da vida, no entanto, a maioria fica chocada, ainda mais quando alguém jovem se vai de repente.
    Em todo caso, a verdade é sempre melhor. Cada um tem lá sua maneira de receber uma notícia ruim.
    Não acredito em dores insuportáveis. Suportamos o que precisamos suportar para a nossa melhora como ser humano.
    Há uns cinco anos, ou mais, nem lembro, recebi um " falso" diagnóstico. Eu poderia estar com câncer.
    A primeira reação foi sentir nojo do meu corpo. Depois, prostração. Em seguida, falei para a minha mãe, a única que me acompanhava ao médico : " Enquanto o resultado não sair, não quero que você toque nesse assunto com ninguém. Não quero piedade. Detesto ser vítima.E completei : Se tiver a doença, não vou me tratar . Vou deixar a morte vir naturalmente."
    Bom, depois de repetir os exames, eu não tinha nada.

    ResponderExcluir
  6. Muito importante o que você enfoca, Mara. Tive uma expeiência terrível quando minha mãe faleceu. O médico dissera que ela estava bem melhor e que sairia do hospital logo. No dia seguinte, sem rodeios ele nos disse: "pois é...dona Alípia estava melhor mas hoje houve óbito." Exatamente assim.
    Acho que noticias ruins devem ter todo um preparo. É uma forma de amenizar a dor.
    Beijos

    ResponderExcluir
  7. Amigos, quase todos acham que a verdade é melhor. A minha opção é pela pancada firme e única. Já tive suspeita de doença grave não confirmada, como também confirmação de doença grave. Prefiro saber logo. As reações a verdade também variam bastante. Há quem não pare de falar no assunto e outros que fingem estar tudo bem, e negam o que estão cansados de saber. Enfim, são maneiras de suportar os fatos.
    Obrigada pelos comentários.

    ResponderExcluir