terça-feira, 9 de fevereiro de 2010




Rafaella, uma guerreira

* Por Risomar Fasanaro

Ali estávamos nós: Dina, Lídia, Vera e eu. Dina lia os poemas de Manuel de Barros (1), Vera lia “Os sentidos da Paixão” (2), eu “devorava” a nova biografia de Clarice Lispector (3) e Lídia, bem, Lídia repousava na rede e nos oferecia a dádiva de suas reflexões sobre o que líamos, além de todo o suporte histórico, explicando, contando fatos e relembrando personagens que tinham a ver com o que líamos.

Eu estava ali para ouvir, mas às vezes me desligava e voltava à leitura de alguns trechos da biografia da deusa.

Havia minutos de silêncio logo depois interrompidos por uma nova leitura ou um comentário sobre as leituras, mas o que depois da biografia de Clarice mais me interessava eram as histórias de Vera, de Lídia, de Dina sobre seus antepassados.

Neta e bisneta de imigrantes italianos, quando estive na Itália e vi o porto de Gênova me emocionei demais, tentei recompor a imagem do meu avô paterno, e depois do meu bisavô, saindo daquele porto. Não encontrei corpo, não encontrei rosto, só o sentimento de alguém que partia para nunca mais, do meu avô que veio primeiro, e do meu bisavô que veio depois para tentar convencer os filhos a voltarem, pois não agüentava mais a saudade.

Um amor por aqueles dois homens que jamais vi sequer em foto, me invadiu. Deles só o sentimento, mais nada. Sentimento que é só busca, só saudade. Vem daí esta necessidade de ouvir o que elas contavam. Retalhos de uma, de outra vida em que costuro a colcha de retalhos, minha historia.

Ali naquela casa cercada de flores e folhagens, onde o cheiro de terra, de raízes, e onde de vez em quando a maresia entrava pelas janelas eu não sentia falta de nada, de ninguém. Estava pendurada ao fio daquelas reminiscências sem fim.

Agora era Vera que relembrava o avô paterno. Uma história que foi interrompida na praia, e cujo final ouvi em um dia de chuva já aqui em São Paulo. Meu interesse era tamanho que durante a exposição faltou luz, e completei as anotações à luz de velas. E ela nos contou:

Era um homem moreno de estatura mediana, olhos e cabelos escuros o avô Pasqualli. Viera de Savelli, comuna italiana da região da Calábria no sul da Itália, e depois de trabalhar um tempo na agricultura conseguiu comprar umas terras. Eram aproximadamente duzentos alqueires que ele transformou em uma fazenda.

Tudo naquelas terras era produzido por ele, a mulher Rafaella e os filhos: café, arroz, feijão, farinha de trigo, de mandioca, fubá, polvilho. A única coisa que compravam era sal, tudo mais nascia das mãos daquela família.

Outro fazendeiro cujo nome por razões óbvias não posso citar, procurou Pasquali com o objetivo de comprar a propriedade, pois queria ampliar suas propriedades, mas ele se recusou a vendê-la.

Após a recusa, Pasquali começou a receber ameaças, mas nunca deu a mínima importância. Acreditava que “cão que late não morde”, mas um dia , cavalgava pela propriedade quando capangas invadiram suas terras e o assassinaram. O animal o arrastou até a sede da fazenda, preso apenas pelo estribo.

Ficou Rafaella, a viúva, uma calabresa forte, valente, mulher de pouco riso, que de tanto trabalhar na lavoura aparentava vinte anos mais do que seus 34 anos. E embora sofrendo a dor da perda, decidiu que ali continuaria a viver com os oito filhos.

Em um tempo em que as mulheres não se dirigiam à sala, onde só o marido conversava com as visitas, um tempo em que não tinham direitos, mas apenas deveres, ela decidiu que não cederia à sede de poder do inimigo, e junto com os filhos ainda crianças, continuou tocando a fazenda. O proprietário que encomendara o assassinato do marido continuou a pressioná-la, muitas vezes ela viu sua propriedade invadida por capangas, mas nunca se deixou dominar pelo medo.

Uma ocasião, era madrugada quando ela acordou com barulho de gente forçando uma das portas. Levantou da cama, retirou a tranca de uma das portas e esperou.

Quando dois facínoras arrombaram a porta, ela os recebeu com a tranca na mão. E bateu nas pernas dos dois com tamanha força que as fraturou, e ambos caíram no chão.

E para nosso espanto, Vera nos conta que além de ter feito isso, Rafaella ajudou os outros capangas a colocá-los sobre os cavalos e partirem em retirada.

Alguns anos depois, cansada de viver sob constantes ameaças, a mulher resolveu vender a fazenda e mudar-se para Ribeirão Preto...


Notas:

(1) Manuel de Barros- “Matéria de Poesia” Editora Record
(2) Gisela Haddad- “Amor e Fidelidade”, Ed. Casa do Psicólogo
(3) Benjamin Moser “Clarice”, Ed. Cosacnaify

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.





2 comentários:

  1. Viajei Risomar, me senti ali
    pertinho...ouvindo tudo com
    a mesma avidez de todos
    absorvendo toda essa riqueza
    de detalhes.
    Adorei.
    Beijos

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  2. Algumas mulheres viraram lendas, fizeram coisas impensáveis. Temos de aplaudir essas pioneiras e desbravadoras. Se hoje temos onde pisar, foi por que elas calçaram o chão para nós.

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