terça-feira, 2 de fevereiro de 2010




O que fica

* Por Risomar Fasanaro

O que fica quando a velhice chega e os amores, os filhos, os amigos partiram e a saúde impede que se leve a vida ativa que se levava antes?

Fui levada a refletir sobre essa situação quando ouvi o depoimento de Lídia. Seu José, pai de minha amiga, está viúvo há um ano; já não anda, os anos pesam, e sua forma de reagir ao peso dos anos é uma lição de vida.

Quando a vida nos leva a tal situação, tal qual um náufrago, é preciso agarrar-nos aos fios da memória, para não mergulhar na escuridão do esquecimento, do delírio. E o que de melhor seu José tem é a memória. Memória que ele exercita dia a dia, hora a hora.

Alguém já disse que é ela, a memória que nos mantém vivos. Que sem ela, deixamos de ser, passamos a habitar um corpo sem rosto, uma alma vazia, sem alimento para viver.

Um dia desses Lídia encontrou sobre a mesa da sala o soneto “À Virgem Santíssima” e reconheceu naquele manuscrito, a letra do pai. Encantou-se com a beleza, a perfeição do texto, e pensou ser ele o autor.

Quem sabe descobria naquele instante que o pai era poeta e ela nunca se dera conta? Fosse dele o poema, e poderia junto com os irmãos providenciar a publicação de um livro. Perguntado, ele marotamente não disse ser uma copia de Antero de Quental: “sim, fui eu”, respondeu risonho
.
Seria mesmo dele aquele soneto tão bonito, tão perfeito?

Alguns dias depois, uma das enfermeiras que cuidam dele, disse à Lídia que estava preocupada, pois à noite seu Pedro ficava falando números, fazendo cálculos. Lídia riu e se lembrou de que o pai calculava o concreto utilizado nas obras da empresa de construção em que trabalhava, e que lhe confidenciara que estaria refazendo mentalmente todos os cálculos que fizera em seus mais de 30 anos de trabalho.

Cálculos que é bom saber, eram feitos em uma época em que não havia computador, não havia sequer máquina de calcular.

Alguns dias depois seu José escrevia “I Juca Pirama”, poema de Gonçalves Dias, e vendo aquilo, Lídia foi conversar com o pai e ele lhe contou: sim, após ter refeito todos os cálculos do concreto, agora ele rememora os poemas que decorou no seu tempo de colégio. E contou à filha:
-Eu estudava em um colégio de padres, e quando nós aprontávamos, os padres nos mandavam copiar varias vezes um texto. Qualquer texto. Depois de copiar varias vezes, nós decorávamos.
-E o senhor escolhia poesia porque gostava pai?
E ele rindo lhe confessa: “é que os padres nos mandavam copiar cinqüenta, cem linhas, e as linhas das poesias são mais curtas, não é?”

Pois é, aquilo que foi imposto como castigo, veio a se tornar um prazer. Seu José passou a gostar e a decorar os poemas que lhe eram impostos, e hoje esses poemas preenchem seu mundo.

Depois ele confidenciou à filha o método que utiliza para relembrar os poemas: a cada dia se propõe a tarefa de relembrar um certo número de versos, até que um dia relembra a obra inteira.

Recentemente, uma professora da escola em que Lídia é coordenadora pediu a ela que fosse conversar com uma classe da 3ª serie do ensino médio, em que ela acabava de exibir o filme “Contos de Nova York” que conta a historia de um pintor e sua relação com a arte.

Após a exibição do filme a professora tentava promover um debate, mas os alunos não se mostravam dispostos. Conversavam, riam, levantavam-se dos lugares, enfim... aquilo estava mais para feira de Caruaru do que uma sala de aula. E é de se admirar, pois se trata de uma escola particular de alto nível.

Não agüentando mais a bagunça, a professora apelou para a presença da coordenadora. Que ela fosse até lá, quem sabe sua presença impusesse mais disciplina.

Inicialmente Lídia utilizou alguns argumentos para despertar o interesse da classe para o debate, mas eles não estavam mesmo interessados. Disseram que não viam importância alguma naquele filme, nem naquele debate. Ela então teve um insight. Pediu silêncio e falou:
- Olha, eu peço licença para contar a vocês uma situação que estou vivendo. Depois vocês decidem se devem ou não fazer o debate. E contou:
- Meu pai está doente e não pode se locomover. Sabe o que ele faz para se manter lúcido?

E ela contou os recursos que o pai utilizava para manter a memória viva. Os alunos passaram a ouvi-la atentamente, e ela continuou:
- Meu pai copiava aqueles poemas apenas como uma forma de punição, no entanto, hoje, eles têm uma importância enorme para ele. São eles que o mantêm lúcido e o fazem se sentir vivo.

O que hoje você pensa não ter nenhuma importância, um dia poderá ser tão valioso para vocês como hoje os poemas são para meu pai.

Com a sala em completo silêncio, trinta alunos refletiam. E ela concluiu:
- Na vida, o que fica é isso: o que a gente aprendeu, o que a gente realizou, o que a gente amou.

Logo após, trinta alunos discutiam calorosamente o filme a que tinham assistido.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.



3 comentários:

  1. Bela lição de vida. Fazer da memória
    um caminho para não cair no esquecimento.
    Parabéns Risomar.
    Beijos

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  2. Muito bom texto, Risomar. Na verdade, os alunos não precisavam mais do filme na tela. Tinham um inteiro nas palavras da coordenadora.

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  3. Obrigada Nubia e Urariano por seus comentários sempre generosos.
    Abraços

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