quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010




As razões do pobre

* Por Raul Fitipaldi.

Que tal uma rapsódia para violino e orquestra de Béla Bartók? Melhor ainda sua Sonata Profana. Minha paixão por todo tipo de música não descansa. Um fado interpretado por Dulce Pontes. Uma salsa de Los Van Van. O bandoneón de Aníbal Troilo “Pichuco”, um candombe mistureba de Rada. É... Que glória a música! No entanto, até hoje, passados os cinqüentinha, a minha sinfonia preferida a todas as outras é a descarga do banheiro. E tenho duas motivadoras e sonoras executoras de tal estupendo diapasão.

Escutei por primeira vez a delicada partitura já avançados os nove anos. Nunca o mais avantajado dos penicos de latão ou louça que tínhamos na casa sem porta, com teto de zinco, sem geladeira e de pobres colchões de lã de carneiro surrada e poeirenta, pôde me entregar tão gostosa melodia como a descarga da privada. Outros sons formaram aos poucos a luxuosa camerata. A chave da primeira porta, substituta da tábua com cadeado e trave de ferro. O toca-disco japonês vermelho e o motor fresco e monótono da primeira geladeira que acompanhava os sonhos de meia-noite. Finalmente, a rádio Spyka. Que absurdo andar pela rua com aquela maravilha embrulhada em couro e que narrava futebol! A cara das meninas! Nessa época já passavam-se 11 ou 12 anos do meu nascimento. Tomava banho de ducha, não mais no tanque de latão que jorrava minha sujeira no quintal do fundo. Adriana, minha vizinha, podia entrar segura que não se toparia de novo com seu amiguinho tomando banho e descobrindo o desalentador tamanho da sua virilidade em qualquer lugar da “casa”.

Quem sempre teve porta com chave, teto de laje, alimentos fresquinhos sem moscas, ducha de água fria ou quente, eletricidade, comunicação com o mundo afora e, sobretudo, privada, não imagina o delicioso que é o som mesclado disso tudo.

Dias atrás, escrevia escutando música caribenha de Ruben Blades e entrou um furacão de notícias. Era mais um evento social desta “democradura” de ricos que nos governa no Estado de Santa Catarina. Dizia mais ou menos assim o comunicado que enviaram várias entidades sociais, militantes e líderes comunitários do povo pobre que narrava uma atividade em defesa de três lideranças que foram seqüestradas de forma arbitrária:

“A atividade condenou a prisão arbitrária do coordenador do MST de SC, Altair Lavratti, do militante Rui Fernando da Silva Júnior, e da líder comunitária Marlene Borges. Lavratti foi algemado e preso em Imbituba, quando participava de uma reunião com catadores de material reciclado, num galpão, na noite de quinta-feira. Marlene e Rui foram presos na manhã de sexta-feira, depois de se apresentarem voluntariamente. Rui também foi algemado.

As acusações envolvem esbulho possessório (tomada violenta de um bem), formação de quadrilha e incitação à violência, e segundo a PM, foram “preventivas”, ou seja, para evitar que os supostos crimes fossem cometidos. As investigações começaram em dezembro, no entanto, há mais de 10 anos o MST participa de encontros com a comunidade local, informando as famílias sobre seus direitos.

A área de 200 ha, principal motivação das ações, pertence ao Governo Federal e foi cedida ao Governo do Estado para formação de uma Zona de Processamento de Exportações (ZPE) em 1996, no entanto, desde então está abandonada. “O objetivo das reuniões era informar as pessoas sobre seus direitos e mostrar que o MST está solidário às lutas das famílias exploradas também nas cidades”, explicou o coordenador do MST, Lucídio Ravanello. O problema, segundo a comunidade local, é a privatização dos espaços, sem chance para que as famílias possam utilizar-se de uma área que é pública”.

Nessa hora, me lembrei de ter visto alguma vez pessoalmente ao Altair Lavratti, um magrão de olhar forte, que não pode negar o sobrenome italiano. Nariz agudo apontando o cangote do milico, do burguês. Talvez por nascer entre descendentes de espanhóis da Galícia e italianos do Sul, tenho a sensação de que os pobres apontamos com o nariz por falta de melhores instrumentos ou por orgulho de sermos pobres e ter claro qual é a nossa classe. Mas, nariz à parte, um aluvião de notícias e explicações de parte e contraparte começou a cair no computador, via correio eletrônico, via MSN, via Skpe, via-da-via-da-via. Nossa gente pobre explicando que foi injusto, ilegal, que foi seqüestro, prisão preventiva, etc. E aí, depois de se passarem vários dias do terremoto do Haiti, no qual refleti até o cansaço sobre as razões dos pobres pela liberdade, a saúde, a educação, a independência, a livre determinação dos povos, voltou à minha cabeça o tempo aquele em que descobri uma privada, e a música inconfundível da sua descarga. E nesse tom de lembrança rosnei encima do teclado: “Que merda faz como quê um rico tenha direitos que os pobres não temos?”

Por que, se um pobre, ou dois ou milhares pretendem ocupar uma terra pública (não falo do caso relacionado, nem de nenhum outro em especial), terra de todos, têm que se explicar, têm que ir em cana, têm que ser surrados como escravos dos cafetões do capitalismo? Por que, nós os pobres, por exemplo em Meiembipe, não temos o direito de botar em cana os donos dos meios do transporte coletivo de passageiros que invadem, sem dúvida, e à vista de toda autoridade municipal, estadual e federal, terrenos públicos, alguns que já foram mar inclusive, e ainda lucram milhões e milhões com isso. Por que não vai em cana preventiva o dono de uma empresa que através de uma licitação ludibriada fica com o controle do ir e vir das pessoas, através de uma concessão indigna e que mantém como refém toda uma cidade, onde a mobilidade urbana é caótica, destrutiva, sectária e poluente. Por que? Porque não é pobre. Suas razões não são a alimentação básica, a saúde, a educação, a segurança, menos ainda o transporte público e coletivo. Suas razões são o lucro, o poder provincial do capital, a cópia impertinente da matriz imperialista e euro-centrista, a exploração do outro, daquele que de fato, não é seu semelhante. Nunca me permita a vida ser semelhante de um explorador privado do transporte, nem de ser parecido. Sou pobre, pertenço ao público e o público deveria me pertencer na pequena parte de riqueza que me corresponde. Não invado, o privado me invade! Não tiro mão de obra, sou a mão da obra! Não vivo do valor agregado, sou o valor! Não sou uma pessoa/produto, sou um humano produtivo, fabrico meu destino, não sugo o dos outros! Lavratti, lavra seu futuro com as mãos, com as idéias, com os sonhos. A dança do Lavratti vem com a chuva boa nos plantios, não com o Bolshoi de segunda.

É quase natural, embora Brecht nos ensine que não devemos dizer que algo é natural, que os pobres valoremos muito uma privada, sua descarga; um livro, seu conteúdo; um remédio, seu alívio; uma porta, seu abrigo. É normal, embora tudo seja anormal num estado de direito burguês, que os pobres queiramos comer até nos saciar para não sentir mais fome, além da gordura ou da magreza; até arrotar se possível, educadamente. Comer, beber, estudar, ser saudável, fazer nossas necessidades com dignidade, não morrer de frio ou calor, cuidar da Mãe Terra e da Pátria Grande. É óbvio que não queiramos estar dando explicações a toda hora para demonstrar nosso direito à vida bela, à doença digna, à morte respeitada; a ir e vir com o conforto simples que um trabalhador rural, intelectual ou fabril merece. Fechar o dia na roça saudando a lua, tão livres como quando recebemos o sol do amanhecer na beira da praia. Ai! Mas, se é dessa liberdade que os ricos renegam, da liberdade do pobre, porque na sua tentativa inútil de acumular todas e cada uma das riquezas, os raios de sol tão importantes para os pobres, as lágrimas do orvalho tão delicadas e brilhantes para nós, para eles não valem nada. E morrerão na escuridão, rodeados de paredes e cercas elétricas, sem ter lutado por razão alguma, sem ter sonhado com a parição das suas mãos, donos da nada e sem rumo. Vazios, frutos inglórios de um sistema em petição de miséria.

As razões do pobre não precisam de Estado, de Fronteiras, de Muros, as razões do pobre são anteriores à história, são a vida mesma.

* Jornalista de Florianópolis/SC


Um comentário:

  1. Texto forte com argumentação impecável. Muitos gostarão, exceto os diametralmente opostos.

    Destaco: " É óbvio que não queiramos estar dando explicações a toda hora para demonstrar nosso direito à vida bela..."

    Explicar cansa, as vezes.

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