sábado, 9 de junho de 2018

Tamerlão - Edgar Alan Poe


Tamerlão

* Por Edgar Alan Poe

Doce consolação nesta hora extrema! 
Tal, Padre, agora não será meu tema... 
Não direi loucamente que um poder 
terreno me liberte do pecado 
sobre-humano de orgulho, em mim a arder. 
O tempo de sonhar é já passado: 
Dizes que isso é esperança; e a desvairada 
chama é só a agonia de um anseio! 
Se creio na Esperança... Ó Deus! Bem creio... 
Sua fonte é mais divina, mais sagrada... 
Ancião louco eu não quero te chamar, 
mas isso é coisa que não podes dar. 

Conheces de um espírito o segr
edo, 
da soberba atirado em plena lama? 
Herdei, ó coração a palpitar, 
teu quinhão de desprezo, com a fama, 
a glória consumida, a cintilar 
de meu trono entre as joias, qual coroa 
infernal. Porque dor alguma o inferno 
pode agora trazer, que me dê medo. 
E anseias pelas flores, coração, 
e pelo sol das horas de verão! 
Desse tempo defunto o canto eterno, 
com seu soluço intérmino, reboa, 
em teu vazio, nos sons enfeitiçados 
de um dobre doloroso de finados. 

Do que hoje sou, já fui bem diferente. 

Usurpador, obtive, conquistei 
o diadema que cinge a fronte ardente. 
Roma e César não deu a mesma ousada 
herança, que me estava reservada? 
A herança de um espírito de rei, 
para lutar, espírito altaneiro, 
triunfalmente, contra o mundo inteiro. 

Em região montanhosa ao mundo vim. 

As brumas de Taglay pulverizavam, 
à noite, o seu orvalho sobre mim, 
e acredito que as asas, em violentos 
tumultos, e as tormentas, e os mil ventos, 
em meus próprios cabelos se aninhavam. 

Esse orvalho, depos, do céu tombando 
(entre noites de sonhos condenados) 
era um toque de inferno sôbre mim, 
enquanto rubras luzes, cintilando 
em nuvens, que oscilavam quais pendões, 
pareciam-me, aos olhos malcerrados, 
do poder régio as predestinações, 
e dos trovões profundos o clarim 
sôbre mim se atirava, proclamando 
que, em humanas batalhas, estentórea 
criança louca! – a minha voz bradava 
(como minha ala se regozijava 
e ante esse grito o coração saltava!) 
o grito de combate da Vitória! 

Na fronte sem abrigo se esparzia 

a chuva rude, e o vento me tornava 
desatinado, cego, ensurdecido. 
Era apenas um ente que lançava 
louros em mim, pensava então, e a fria 
fúria do ar fustigante, a meus ouvidos 
cantava a evocação de destroçados 
impérios, o clamor dos capturados, 
o rumor dos cortejos, a canção 
com que aos tronos rodeia a adulação. 

Minhas paixões, desde êsse infausto dia, 

sobre mim exerceram tirania 
tamanha, que, somente com o poder, 
se pôde o meu caráter conhecer. 
Mas, Padre, então, ali vivia alguém... 
então... na juventude... quando a chama 
das paixões mais se alteia e mais se inflama 
(porque paixões só a juventude tem), 
alguém que soube ver, no peito de aço, 
de uma fraqueza feminil o traço. 

Não tenho t
ermos... ai... para dizer 
o quanto é doce o verdadeiro amor! 
Nem tentarei agora descrever 
dessa face lindíssima o primor, 
pois seus contornos são, na minha mente, 
sombras que ao vento vão, voluvelmente. 
Recordo ter-me outrora debruçado 
sôbre folhas de ciência do Passado, 
até que cada letra, tão fitada, 
e cada termo se desvanecesse 
e seu próprio sentido se perdesse 
em fantasias e, por fim, em nada. 

Ah! todo o amor bem elas merecia 

e era o meu afeto qual de criança. 
Razão tinham os anjos de a invejar. 
Seu jovem coração era um altar 
em que meus pensamentos e a esperança 
eram o incenso, a oferta que subia 
com pureza infantil, imaculada, 
de seu jovem modelo copiada. 
Por que os abandonei, pela paixão 
da luz, que inflama e empolga o coração? 

Crescemos... e conosco o amor crescia... 

vagueando na floresta e nos desertos. 
Na tormenta meu peito a protegia 
e quando, amiga, a luz do sol sorria. 
E se ela contemplava os céus abertos, 
somente em seu olhar os céus eu via. 

A primeira lição do amor nascente 

está no coração, pois, sob o ardente 
sol, vendo esses sorrisos sem cuidados, 
rindo de seus brinquedos estouvados, 
eu me lançava no seu seio arfante 
e em lágrimas minha alma se expandia. 
Ah! dizer mais eu não precisaria, 
nem acalmar temores vãos, perante 
quem ficava, sem nada perguntar, 
voltando para mim o quieto olhar. 

E embora merecesse mais que o amor, 

a minha alma impaciente se exaltava 
quando, num cume de montanha, a sós, 
a ambição lhe falava em nova voz. 
Todo o meu ser só nela consistia;
o mundo e tudo quanto êle encerrava, 
na terra, no ar, nos mares, a alegria, 
os quinhões pequeníssimos de dor, 
que eram novo prazer, os ideais, 
noturnos sonhos de vaidade impura, 
e as coisas mais sombrias, porque reais 
(as sombras... e uma luz bem mais obscura!) 
nas asas do nevoeiro se evolavam 
e assim confusamente se tornavam 
numa imagem, num nome... um nome... duas 
coisas, unificadas, porque tuas. 

Eu era ambicioso. Já tiveste 

paixões, Padre? Não! Não as conheceste! 
Um trono para mim, filho do lodo, 
que o mundo dominasse quase todo, 
sonhei, a maldizer a minha sorte. 
Mas, como todo sonho, também este, 
sob o vapor do orvalho, voaria, 
não viesse da beleza o brilho forte 
que o cumulava, ainda que, se tanto, 
por um minuto, por uma hora, um dia 
pesar-me na alma com dobrado encanto. 

E passeávamos juntos, pela crista 

de elevada montanha, donde a vista 
caía, dos penhascos escarpados 
e altivos, das florestas, nos outeiros 
esparsos, de bosquetes coroados, 
rumorejando com seus mil ribeiros. 
Falava de poder e de vaidade, 
porém misticamente, que a verdade 
a ela eu não queria revelar 
no que dizia; e então, em seu olhar, 
talvez eu lesse, descuidadamente, 
um sentimento, do meu próprio irmão. 
O brilho de suas faces parecia, 
para mim, transformar-se em refulgente 
trono; e eu consentir não poderia 
que elas brilhassem só na solidão. 

De grandezas então eu me envolvia 

tomando uma fantástica coroa; 
e não era, contudo, a Fantasia 
que seu manto viera em mim lançar. 
E se entre a humanidade, a turba alvar, 
é o leão da ambição, que se agrilhoa, 
entregue à mão de um domador que o mande, 
não é assim no deserto; lá, o que é grande 
conspira com o terrível e o sem-par 
para as almas com o sopro incendiar. 

Contempla Samarkand! Contempla-a agora! 

Não é rainha da terra e se alcandora 
sôbre as cidades todas? Não lhes traz 
os destinos na mão? E não desfaz, 
solitária e fidalga, tudo quanto 
de glória e fama neste mundo medra? 
Se cair, sua mais humilde pedra 
há de formar de um trono o pedestal. 
Quem é seu soberano? Tamerlão. 
Êsse que os povos viram, com espanto, 
subir, calcando aos pés cada nação, 
um bandido com a coroa real! 

Ó amor humano! Tu, que dás, no mundo, 

o que esperamos vir do céu profundo; 
que cais na alma, qual chuva abençoada 
sobre a planície adusta e calcinada; 
e, não podendo dar ventura, fazes 
do coração deserto sem oásis; 
tu, ideia que toda a vida encerra 
em música de sons tão singulares 
e belos, que na selva têm seus lares, 
adeus! adeus! pois conquistei a Terra! 

Quando a Esperança, essa águia da amplidão, 

os altos cimos já não mais avista, 
suas asas se curvam, de mansinho, 
e o olhar se volta, doce, para o ninho. 
Era o sol-pôr; e quando o sol declina 
um desespero sobe ao coração 
de quem ainda quisera ter à vista 
o esplendor estival da luz solar. 
A alma aspira a bruma vespertina, 
tão cariciosa, atenta a perceber 
o som da treva (ouvido sempre pelos 
que sabem dar-lhe ouvido) a se arrastar, 
como quem quer, em meio a pesadelos, 
fugir de algum perigo, sem poder. 

Que importa brilhe a lua, a lua fria

com seu fulgor mais lúcido e mais forte? 
Seu sorriso e seu brilho são gelados, 
naquelas horas de melancolia, 
como um retrato feito após a morte 
(vendo-o, nem respiramos, assustados). 
E a juventude é como um sol de estio, 
cujo poente é o mais triste, porque então 
já nada mais ignora o coração 
e o que guardar quisemos no fugiu. 
Pareça a vida, pois, qual flor de um dia, 
com a beleza que, esplêndida, irradia. 

Voltei para o meu lar, não mais meu lar,

pois tudo o que fazia assim se fora.
Penetrei no musgoso umbral e embora
fosse meu passo lento e comedido
veio uma voz da pedra do limiar,
a voz de alguém que eu conhecera outrora.
Oh! desafio o inferno a que apresente,
nos seus leitos de fogo, mais ferido
coração, ou desgraça mais pungente!

Eu creio, Padre, eu firmemente creio, 

e bem sei – pois a morte, que me veio 
da longínqua região abençoada
onde não mais existem ilusões, 
vai entreabrindo os rígidos portões 
e cintilam os raios da verdade,
que não vês, através da Eternidade... 
Sim, eu creio que Eblis posto havia 
sua armadilha, sob a humana estrada. 
E se não, por que, quando eu me perdia 
no bosque santo desse ídolo, o Amor, 
de asas de eneve sempre perfumadas 
com o incenso das ofertas mais sagradas, 
no bosque iluminado intensamente 
pelos raios do céu, nesse bosque onde 
nenhum ser, por mais ínfimo, se esconde 
a seu olhar de águia, abrasador, 
por que, então, a ambição se insinuou, 
sem ser vista, entre os sonhos, a crescer, 
até lançar-se, a rir, ousadamente, 
nas madeixas do Amor, do próprio Amor?


* Escritor, poeta, editor e crítico literário, integrante do movimento romântico norte-americano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário