terça-feira, 10 de novembro de 2015

Sombra dos 70

* Por Raul Fitipaldi


Queria te dizer, queria
Que vi os cavalos desesperados correndo
Castigados pela milicada atrás de um estudante
Ia te ligar e contar-te-ia
Que a revistaram antes de entrar no auditório
E que só tinha uma câmera e um gravador
Para entrevistar a presidente dos trabalhadores
Sonhei que tinha que te avisar
Que andaram revisando minhas mensagens
Grampearam meu telefone
Ou sonhei e quero esquecer, porque
Ufa, porque estou em democracia
Porque não pode ser verdade que
Matem índios como moscas
Que desmembrem negros e mulheres
Como migalhas de pão
Que explorem imigrantes pobres
Pedia permissão às mãos para escrever-te
Que os órgãos de repressão matam dois por dia
Em São Paulo, e outros no Rio, e que
Mais um haitiano foi assassinado aqui perto
Sorria, tonto, atônito, porque não devia ser real
Porque não sei quando foi que o tempo voltou atrás
Quem girou as agulhas,
Quem baixou ao porão da história,
A caverna da loucura, o medo,
O ódio, o terror, quem, quem, quem
Deu a ordem de que perdêssemos o pouco,
O quase nada que conquistamos com fome,
Sangue, prisão, exílio, desaparecidos e recuperados.
Pretendia, digo, quis, quero quebrar meu silêncio
Para te dizer que vi, na rua, no jardim de casa,
Na xícara do café, na esquina da cama
A sombra dos 70
E temos que apagá-la.

* Jornalista


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