domingo, 15 de novembro de 2015

Manhã de tiete


* Por Flávio Tiné

  
Seria um domingo qualquer. Pegaria o jornal enquanto o leite esquenta, tomaria um banho enquanto o pão não chega, e faria a barba para tirar aquela impressão de ressaca ou de quem não dormiu. Separaria os cadernos do jornalão um a um, pela ordem, de tal forma que os de propaganda ficassem à parte, para eventual consulta. O mais importante naquele momento era arranjar um programa para depois do passeio pelo Ibirapuera. Pronto. Achei. Ali estava o programa ideal. Além de econômico, com certeza de bom gosto.

Havia um inconveniente: a distância. Mesmo dentro da própria cidade de São Paulo, o teatro fica a mais de 20 quilômetros da residência. O espetáculo era no Belenzinho e não havia mais a linha Penha-Lapa, que passava mais ou menos perto da rua que pretendia ir. Problema? E o velho carro na garagem, pra que serve? Tem gasolina? Tem. Bateria? Os pneus estão em ordem? Estão. Então vamos lá.

Foi assim que cheguei ao Sesc, antes do espetáculo. Inicialmente, senti-me incomodado com o grande número de idosos, e comentei comigo mesmo:
- Ora, vivo fugindo desse espelho inconveniente, para evitar que lembre a minha idade a toda hora, e eis que topo com um bando de velhinhas que tiveram a mesma idéia. 

A impressão logo se desfez ao perceber que as velhinhas levavam filhas, netas, bisnetas, sei lá, um monte de meninas sorridentes que ali estavam para se divertir e nem se preocupavam com a idade dos outros. Uma das meninas me disse bom dia. Agradeci comovido. Tivera a impressão, naquele momento, de que viver vale a pena. Ainda me dão bom dia. E não me chamaram de vovô, como fazem as meninas da vizinhança, que às vezes também me chamam de tio, pois não sabem o nome de um velho inútil que mora sozinho!

Entrei às pressas no teatro e só não fiquei chocado porque conhecia o ambiente. Era um velho freguês – agora no sentido de habitué – pois é lá que assistia de vez em quando a Sinfonia Cultura. Ainda se usa essa palavra, habitué? Procurou um Michaelis para certificar-se de que a grafia estava correta. Estava. O que não estava no lugar era o dicionário, pois a mocinha que faz limpeza uma vez por semana costuma espanar os livros um a um, mas, terminada a faxina, os repõe fora do lugar. Mistura romance com dicionário, Direito Civil com poesia e uma preciosa coleção de perfis parlamentares com livros de culinária. É verdade que gostaria de fritar certos deputados e senadores, mas nenhuma receita servia para isso. Nem era necessário. Para fritar, a receita seria simples. Era só tocar fogo. Mas, decididamente, não era nenhum antropófago. No máximo um ex-panfletário, ex-servidor, ex-revolucionário.

Quanto ao Michaelis, o livrinho lhe deu a certeza de que estava empregando a palavra no sentido exato, ou seja, o de freqüentador assíduo daquele teatro.

Tão assíduo que não se incomodava com as crianças que eventualmente conversavam durante os concertos. O maestro dizia todos os domingos, e repetia à exaustão, que crianças são sempre bem-vindas, pois é cedo que se aprende a gostar ou não de alguma coisa.

Tão assíduo para não estranhar os sacos de areia que rodeiam o auditório, dando-lhe um aspecto rudimentar e ao mesmo tempo inusitado, único, exclusivo. Não conheço teatro igual em simplicidade e funcionalidade, as cadeiras num plano inclinado. De qualquer lugar se vê os músicos e demais artistas, sem precisar espichar a cabeça para a esquerda ou para a direita. Tem uns degraus, é verdade. E degrau, para velho, é quase uma tragédia. Mas eles são alcatifados. Seu Domingos novamente recorre ao dicionário, agora ao Aurélio. Decide que seria melhor dizer forrados, pois alcatifa lembra antiguidade, com sua origem árabe. Mas deixa pra lá.

Como um turista de fim-de-semana, estava com a máquina fotográfica a tiracolo. Sou daqueles que não querem perder nem um momento. Querem registrar tudo, para não esquecer nenhuma paisagem. Logo é advertido de que não é permitido fotografar durante o espetáculo. Tudo bem. Mas não perdoa quando a artista surge, deslumbrante, num vestido branco e esvoaçante. Era Céline Imbert.

Acompanhada do pianista Marcelo Guelfi, fizera um show de arranjos e interpretações inesquecíveis, denominado “Vinícius, Sem Mais Saudades”.

Não sabia o que deveria elogiar mais, se a performance incontestável da dama da ópera ou os volteios originais e criativos do pianista da Jazz Sinfônica, aqui reduzido a acompanhante. Percebeu desde o início quando o pianista tocou solo, que ele não seria um mero acompanhante, e sim um senhor acompanhante. Nem ousaria destacar qualquer música, do total de 19 que compunha o show. A emoção quase o levou à loucura quando Céline interpretou “Deixa”, criação de seu ídolo Baden Powell. Vinícius, Toquinho, Baden, Tom Jobim, Francis Hime, Pixinguinha, Carlinhos Lyra, Edu Lobo e agora Céline Imbert. Era muito para uma só manhã.

Uma manhã inesquecível!

Saí do teatro para almoçar com os filhos, genro, nora e netos com a mais pura sensação de felicidade, levando um CD com as músicas do show, devidamente autografado. Manhã inesquecível, manhã de tiete.

*Jornalista


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