sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Depois da Abolição


* Por Alcindo Guanabara


Este artigo vem retardado de dois dias, o que, para o momento de excepcional celeridade que atravessamos, é uma demora respeitável. Mas para isso houve um motivo poderoso: o Novidades não foi publicado ontem, nem anteontem. É, pois, agora a primeira vez que falamos depois da abolição; e bem preciso é que o façamos quando toda a imprensa se congrega para realizar festejos que comemorem o advento da liberdade.

Outra tivesse sido a nossa posição como jornalista em face desta lei e do governo que a promoveu e nada teríamos a dizer depois da distinção conferida a esta folha, na pessoa de seu redator-chefe nomeado membro da comissão executiva da imprensa. Mas nós fomos o jornalista que mais veementemente a combateu, que mais acesamente se mostrou nessa campanha contra a lei que acaba de ser assinada; e a posição tomada com todos os nossos ilustres colegas nos coloca na contingência de expor a nossa situação no dia seguinte ao da sua passagem para que nos não venha ferir a pecha do leviano e inconsequente.

Nós não podemos aplaudir a lei que acaba de ser assinada, não pelo fato que ela consigna, mas pela maneira por que chegou a ser consignado. Neste momento, porém, já se não trata dos meios por que a abolição deve ser feita - e isto é que era o motivo da divergência - visto que estamos diante do fato consumado. O princípio que desse fato decorre, o reconhecimento da liberdade humana, esse que sempre o amamos, sempre o defendemos, sempre lhe dedicamos todo o vigor e toda a energia de nossa alma.

O que a imprensa soleniza não é, nem pode ser a precipitação dos meios postos em ação para se atingir este ideal; mas pura e simplesmente o ideal mesmo, o fato exclusivo de haverem entrado, para a comunhão dos livres, centenas de homens.

Nós gastamos boa parte da nossa atividade fazendo sentir que a abolição radical devia trazer consequências funestíssimas ao país; e agora que ela está feita pela pior das maneiras, seremos talvez o único jornalista que assim pensa! mas pensamos que essas consequências serão inevitáveis e fatais.

Esta luta da abolição deixa em ambos os terrenos muitos feridos. Nós somos um deles. Mas declaramos que nos levantamos no dia seguinte ao de sua passagem sem ressentimentos e sem ódios, esquecendo todas as ofensas recebidas, todas as injúrias tragadas, todos os desalentos que nos vieram. E o fazemos porque estamos convencidos de que devemos contribuir para que não venha amargurado demais o período que segue.

Nós cremos que passados os primeiros entusiasmos cada um de nós tem de se apertar as mãos e preparar para novas jornadas em campos necessariamente opostos, mas desta vez para atenuar ou para impedir as conseqüências forçadas do passo dado ontem. E antes de quem quer que seja é à imprensa que cabe essa atitude de defensora da tranqüilidade e da vida da nação.

Se puderem falhar estas previsões lúgubres, se podemos reclamar para nós também uma coparticipação no epitáfio que o sr. barão de Cotegipe reclama para a sua lousa, tanto melhor para nós todos, tanto melhor para a nossa pátria! Desejamo-lo ardentemente, pedimos com todas as veras d’alma que nos seja dado registrar numa retratação solene que fomos um fantasista tétrico, um sentimentalista vulgar. Mas essa é hoje a nossa convicção íntima e devemos declará-la, no dia seguinte ao em que se assina a lei que combatemos na medida de nossas forças.

Ninguém decerto se apercebeu deste esforço, e não o salientaríamos se não fosse a situação em que nos achamos. Hoje, porém, não temos escrúpulos em cooperar para que as conseqüências da abolição imediata sejam festas e flores. Muito ao contrário, entendemos (e isso mesmo dissemos anteontem, num artigo em que referíamos a impressão que este movimento devera ter causado ao espírito do Imperador) que o dever dos que a combateram era precisamente envidar esforços para atenuar os males que daí nós supomos que advirão.

A Abolição é, hoje, lei do Estado: só temos que obedecer-lhe e respeitá-la; mas se nos é dado contribuir para que as suas consequências derivem das calamidades sociais que prevemos para as alegrias sociais que desejamos, por que razão nos havemos de negar? As crises econômicas, essas são fatais e estão acima de todo o esforço humano.

Bastem-nos estas! Empenhemos todos os esforços que estiverem a nosso alcance para que o Brasil progrida em paz, na confraternização geral de todos os corações.

A nossa adesão à comemoração da liberdade está, pois, claramente definida nesses termos.

(Novidades, de 15-5-1888.)


* Jornalista, escritor e político, membro da Academia Brasileira de Letras.

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