Vidros e diamantes
* Por Pedro J.
Bondaczuk
O padre Antônio Vieira pode e deve ser
considerado, antes de um sacerdote, competente e atento cronista das coisas e
pessoas do Brasil do século XVII. Seus "Sermões", além dos
ensinamentos morais e espirituais que transmitem, são tão lógicos, tão bem
desenvolvidos e fundamentados que convencem e agradam até o mais empedernido
dos ateus. São, antes de tudo, inesquecíveis aulas de estilo, de técnica de
comunicar mensagens profundas e complexas de forma interessante, inteligível e
agradável. Acabo de fazer uma releitura das suas mais famosas prédicas. É um
refrigério para o amante da boa leitura, depois de se haver com tanto texto
defeituoso e insípido de escritores contemporâneos, muitos tidos até‚ como
"seminais", ou seja, fundamentais para o nosso tempo. Este sacerdote
rebelde, contudo, o é para todas as ocasiões. É intemporal, por sua
genialidade.
Selecionei, um tanto a esmo, uma série
de citações de Vieira, instigantes para o intelecto e gostosas para o ouvido.
Como esta: "Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes
estima e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições
ama e não defeitos. Cuidai que amais diamantes de firmeza e amais vidros de
fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições
humanas. Logo, os homens não amam o que cuidam que amam. Donde também segue que
amam o que verdadeiramente não há; porque amam as coisas, não como são, senão
como as imaginam; e o que se imagina, e não é, não o há no mundo".
É ou não um trecho delicioso, digno de
figurar entre as melhores crônicas de língua portuguesa, embora fosse o corpo
de um de seus sermões? E que argúcia em observar o comportamento humano! A
maioria das coisas que amamos não é como pensamos. Tais "amores" são fantasias, são
ilusões, são projeções dos nossos desejos, "são vidros", que cuidamos
que sejam "diamantes". E não pensem que este seja um trecho raro,
cuidadosamente pinçado daquilo que escreveu (e falou). Anotei em minha agenda de
trabalho centenas dessas pérolas de sabedoria e beleza.
Percebam as nuances desta citação e o
encadeamento lógico que Vieira dá às idéias: "Para um homem se ver a
si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é
cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite,
não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister
espelho e há mister olhos". O estilo de Vieira, classificado de
"Gongórico", em referência a Luís de Gongora, comprova uma tese que
vimos defendendo há tempos, de que um texto simples --- não confundir com
infantil --- tem condições de ser muito mais profundo do que o supostamente
erudito, que na maior parte das vezes descamba para o mero pedantismo, para o
simples exibicionismo verbal.
Escrever é, sobretudo, comunicar
idéias, sentimentos e emoções. O bom redator é aquele que aborda os assuntos
mais complexos e especializados e consegue se fazer entendido não somente pelo
especialista da área, mas por qualquer pessoa de cultura mediana. E desperta
interesse geral. Sabe, sobretudo, ser interessante, sem ser, necessariamente,
polêmico ou panfletário. Mas Vieira é irresistível. Dá vontade de citá -lo
indefinidamente, para compartilhar com os leitores o prazer estético que sua
forma de escrever nos dá. Como este trecho: "O estilo pode ser muito claro
e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham
muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas
para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas
observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante que
não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido
quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há". Melhor modelo
de crônica do que estes textos, que sequer foram escritos com esse fim, não há.
Se houver, não conheço, eu que sou um voraz "rato de biblioteca". Que
farta fonte de sabedoria e de prazer estético é este clássico da nossa
literatura!
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Preciso aprender a ler Padre Vieira e entendê-lo. Tenho alguma coisa aqui, mas ainda não tive a concentração necessária para avançar na leitura
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