terça-feira, 24 de novembro de 2015

As heróicas filósofas medievais


A Idade Média – período demarcado pelos historiadores como tendo começado no século V e terminado no século XV, com o chamado Renascimento – é considerado, quase que por unanimidade, como uma fase de estagnação artística e cultural, sobretudo no Ocidente. A Filosofia, por conseqüência, igualmente se estagnou. Nesses mil anos de estagnação intelectual, prevaleceram duas correntes filosóficas distintas, posto que com o mesmo objetivo: a patrística e a escolástica, ambas baseadas em concepções religiosas, que diferiam, somente, quanto à abordagem. Houvesse liberdade de pensamento, não haveria problema. Todavia, não havia. Tudo o que fosse minimamente contrário aos dogmas da Igreja era considerado heresia. Essa era tida como o maior dos “crimes” e punida implacavelmente. E ninguém, por conseqüência, se atrevia a pensar de forma divergente do estabelecido por Roma, para não terminar seus dias numa masmorra ou, pior, para não ser incinerado em alguma das tantas fogueiras da Inquisição.

Se nesse período houve poucos filósofos masculinos sem algum tipo de vínculo com a Igreja (a maioria era constituída de sacerdotes católicos), imaginem filósofas!!! Às mulheres não era dado o direito de sequer pensar, quanto mais de “filosofar”. Era-lhes  determinado papel específico e imutável, de procriadoras e de virtuosas donas de casa, que deviam irrestrita obediência e estrita subserviência ao pai, ou aos irmãos homens na ausência desses ou ao marido quando casadas. Seu pensamento, necessariamente, tinha que ser o do tutor, fosse ele quem fosse. Houve filósofas nesse longuíssimo período de trevas, que parecia fadado a nunca acabar? Sim, houve, posto que escassíssimas. Minha fonte de pesquisas, a enciclopédia eletrônica Wikipédia, lista, por exemplo, somente cinco delas, sendo quatro européias e uma indiana, embora deva ter havido algumas outras. Quantas? Sabe-se lá!

A filósofa orienta, no caso a indiana, mencionada é Akka Mahadevi, que viveu entre 1130 e 1160 d.C. Em seus 30 anos de vida, deu importante contribuição para a Literatura Kannada Bakhti, sobretudo como poetisa, cuja poesia era didática. Foi ativa defensora das causas femininas, buscando o bem-estar das mulheres. Participou de grupos de estudo de Filosofia, aos quais deu relevante contribuição. Akka não é seu verdadeiro nome, mas um título honorífico de excelência, que lhe foi dado em virtude da relevância da sua obra.

Das quatro filósofas medievais européias, citadas pela Wikipédia, três tiveram estreita ligação com a Igreja, passando grande parte de suas vidas em conventos e respeitando, portanto, os dogmas religiosos vigentes em seu pensamento filosófico. Apenas a quarta foi uma “rebelde”, e tão notável, que suas idéias sobrevivem ainda hoje e sua obra pode ser encontrada no Brasil, traduzida que foi para o português. A primeira dessas mulheres foi a alemã Hildegarda de Bingen, que viveu entre 1098 e 1179. Ficou conhecida como terapeuta e visionária. Legou vasta obra de ciência natural, de Biologia e Botânica e de Astronomia e Medicina. Fundou, em 1165, um monastério beneditino. Seus escritos místicos, teológicos e filosóficos tiveram grande influência do pensamento platônico.

A segunda filósofa medieval citada pela Wikipédia é uma figura conhecidíssima na Literatura. Trata-se da francesa Heloísa de Paráclito, que viveu entre 1101 e 1164. O curioso a seu respeito é o fato dela ser considerada uma espécie de “Julieta”, muito antes de William Shakespeare haver escrito sua famosa peça envolvendo essa trágica personagem. Heloisa foi abadessa do convento de Paráclito, fundado pelo filósofo, e seu mestre, Pedro Abelardo. Ocorre que professor e aluna se apaixonaram, à revelia do tio dela, que era seu tutor e homem muito poderoso na corte. O relacionamento do casal, a princípio só platônico, descambou para uma paixão carnal, completa, absoluta e total, que resultou, como seria de se esperar, na gravidez dela. Abelardo e Heloísa casaram-se, e tudo poderia acabar bem se.... Bem, o tio poderoso não se conformou com o casamento e pagou alguns homens para que castrassem o infeliz amante. O casal foi separado e nunca mais se encontrou. Esse caso está em minha pauta, para tratar dele especificamente, em ocasião propícia. A longa correspondência do casal, que documenta sua infeliz paixão, que não esfriou nem mesmo com a separação, integra um livro famoso, traduzido para o português, bastante conhecido pelos estudiosos de Literatura. Em termos de Filosofia, Heloísa escreveu, ainda, um texto chamado “Problemata”.

Outra filósofa medieval foi uma mulher devota e piedosa, canonizada pela Igreja Católica. Ou seja, foi Santa Catilina (alguns grafam Catarina) de Siena. Viveu entre 1347 e 1380, em Siena, na Itália. Liderou uma comunidade de homens e mulheres e é considerada a última reformadora religiosa do período medieval. Filósofa da corrente escolástica, escreveu “Diálogo da Doutrina Divina”. A ela são atribuídos vários milagres. Catilina (cujo nome significa “Pura”), foi canonizada, em 1461, pelo papa Pio II e, em 1970, o papa Paulo VI declarou-a Doutora da Igreja.

Finalmente, a última filósofa medieval, citada pela Wikipédia, e a única da relação sem nenhum vínculo com a religião, é Cristina de Pizan. Ela nasceu em 1365 na Itália, mas mudou-se com a família, quando tinha apenas quatro anos de idade, para Paris, onde morreu, em 1431, e adotou a cidadania francesa. É considerada a primeira escritora profissional da Literatura mundial. Seu livro mais famoso, escrito em 1405, foi “A cidade das mulheres”, traduzido para o português e encontrável (suponho) em algum dos tantos sebos que há por aí. Foi uma figura tão fascinante, que também pautei comentários específicos abordando sua vida e sua obra. Cristina foi uma “rebelde” na mais estrita conotação de rebeldia. Entre outras coisas, questionou a autoridade masculina dos grandes pensadores e poetas que contribuíram para a tradição misógina e, corajosamente, fez frente às acusações e insultos às mulheres em seu tempo (em muitos círculos, estes ocorrem ainda hoje, posto que de maneira dissimulada). E isso, em plena Idade Média!!!! Foi, sem dúvida, uma grande figura humana e lúcida intelectual e não estranho nem um pouco o fato da sua obra haver resistido ao tempo e ao esquecimento.                 

Boa leitura.

O Editor.

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