sábado, 28 de novembro de 2015

Sujeito Zero (10)

Por Sergio Vilas Boas

  
CANETAS, COMO DESAPARECEM! Sob pressão, o simples sumiço de uma caneta podia alterar o curso dos acontecimentos, o humor, o lazer, o amor. O então presidente Fernando Collor já havia confiscado o dinheiro da poupança dos cidadãos quando Seu Edmundo resolveu amarrar sua esferográfica à perna da mesa com um barbante.

A mesa de trabalho dele era um inferno para qualquer pessoa estressada. Para Seu Edmundo, não. Ele dominava aquela papelada sem fim tanto quanto as montanhas de cheques para compensar. Sim, algum documento importante sempre desaparecia sem explicação. Mas isso era outra coisa, ou coisa de outra desordem.

As tarefas se encaixavam em uma seqüência sistêmica. Quebrada a contagem, às vezes era preciso reiniciar a soma dos cheques três, quatro, cinco vezes. Porque Seu Edmundo perdia o número anterior ou a máquina se apagava por mau-contato. Impressionante: por que ele mesmo não consertou a porra da máquina, então? E vinham os clientes ao balcão, para os quais tinha de repetir, explicar, mostrar, repetir outra e outra vez as mesmas dúvidas, os mesmos problemas.

Os ponteiros do relógio de parede em frente o desprezaram durante anos. No primeiro emprego, Seu Edmundo temia que o rotulassem de incompetente. Podiam chamá-lo de tudo – palerma, pamonha, tartaruga, filhote de preguiça etc. –, mas de incompetente, nunca. Esse pavor deve ter contribuído para ele se tornar uma espécie de robô com acionamento automático.

Um de seus fantasmas era ficar inativo em horário comercial. Porque se alguém dissesse “Seu Edmundo anda meio à-toa” ele se enroscava. Agora, além da vergonha, há o risco de aumentarem sua carga de trabalho sem consulta prévia. Logo começariam a falar de uma tal Nova Economia, ondas de demissões, internet, essas coisas.

Quando acuado pelos maus agouros das tendências, no entanto, ele preferia elevar a mão na altura do bolso esquerdo da camisa e extrair um Derby (Continental já estava fora de mercado) usando o polegar e o indicador como pinças. Desviava o pensamento até Miguel aparecer para tentar decifrar alguma conspiração.

- Jaime manda dizer que... (Miguel esbarra em Seu Edmundo de propósito) ...não é pra você devolver cheques da Cosmos Calçados de jeito nenhum. Nem por ordem da Zélia Cardoso. É pra você ir falar antes com o Laerte. (Confere se ninguém os observa). Sabia que o pessoal dessa Cosmos tem esquema com o Laerte?
- Como assim?
- Eles são donos de dois supermercados no bairro onde o Laerte mora.
- E daí?
- Daí que por isso Laerte segura o barato deles aqui na agência, fazendo vistas grossas para operações ilegais. Você sabe, essa agência tem um dos maiores índices de inadimplência da Regional. O filho da puta, além de não pagar conta de supermercado, calça a família toda com sapatos Cosmos, que custam os tubos.

Seu Edmundo não aprova essas inconfidências. Em seu código de conduta, pessoas que falam mal de outras são suspeitas. Mas Miguel, comprido, magrelo, meio corcunda, era também autêntico e amigo. Empastava o cabelo casta­nho de gel e penteava-o para trás. Conseguia fazê-lo brilhar na mesma intensidade que a testa salpicada de gotas de suor. A barba cerrada, quando raspada de pouco, dava ao rosto uma coloração azul, que durava no máximo um dia. No seguinte dava para vê-la espetada feito cactos. Todo mundo notava. Desengonçado como um dinossauro, ele contorcia a murcha calça jeans ao andar, pois não devia haver manequim possível que se ajustasse em pernas tão longilíneas e es­queléticas.

- A Cosmos tem uma enorme rede de lojas no estado. São enrolados pra caralho! Às vezes levam prejuízo. Mas se derem o fora daqui, fica um rombo fenomenal nos depósitos, entendeu, Dmundão? (Miguel conserta os ombros caídos).
- Entendi.
- Esse Laerte já é de longe o sujeito mais calhorda com quem já trabalhei. Todo mundo lá no Sindicato está de olho no tipinho. Já viu como ele é metido a inventar leis?

Seu Edmundo verifica os quatro cantos, despistadamente.
- Estou contra o relógio, Miguel.

Ele contra o relógio soa engraçado. De fato, nunca ouviu-se alguém dizer que Seu Edmundo agiu por mal. Até os favorecidos com as manobras gerenciais ilícitas na agência mencionaram “a impecável conduta de Seu Edmundo”. Na verdade, ele não passava de um velho anacrônico e acanhado, um consentido. A confiança dele sempre esteve depositada na Grande Bússola – o Instituto Nacional de Seguridade Social. Ele não poderia imaginar que previdência pública se tornaria uma expressão proibida. A geração seguinte à dele se ferrou por completo.

Pois não havia um filho da mãe capaz de consertar o mau-contato daquela porcaria de calculadora eletrônica? Por pouco, naquela tarde, ele punha tudo a perder. Mas digitou o último cheque e tomou nota do total registrado no display. O maloteiro já chamava-o ao balcão. Graças a Deus, os cálculos bateram. Enfiou os pacotes de cheques devolvidos e os documentos contábeis no malote. Travou o lacre e o entregou ao rapaz dos Correios.

Eram 14h30 em ponto, prazo limite. Pela enésima vez, sentiu-se um artilheiro que faz o gol da vitória aos 44 minutos do segundo tempo. Suas abstrações dependiam dessas metáforas futebolísticas, mesmo para o caso de descrever sentimentos íntimos: jogar na retranca, dar chutão, ir mais cedo pro chuveiro, engolir frango, catimbar etc.

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Naufragara o Plano Cruzado. Preparavam o Cruzado Novo. Foi quando Laerte se aproximou da mesa de seu subordinado e ficou observando-o horizontalmente. Seu Edmundo teatralizou sua concentração nas fichas para se esquivar do patrulhamento.

- O senhor tem sorte de ser comedido. (Diz o cavernoso). Um mosca-morta apavorado seria muito difícil Deus conceber sozinho. (E exibe um riso traiçoeiro, nascido de origens primitivas, talvez de algum homem-macaco mentor da malícia).

Seu Edmundo teve a impressão de que Laerte estava arquitetando algo. De fato, planejava mentalmente no­vas formas de controle sobre os escriturários amparado nos revolucionários conceitos de reengenharia administrativa, já em voga nos EUA. Tanto que permaneceu aéreo alguns segundos, como a esmiuçar a função da roda. Quando voltou a si, era outro.

Impôs tom sério à voz e as narinas se expandiram ao máximo.
- Tem uma mulher lá na agência procurando o senhor. (Informa, árido).
- Uma mulher, me procurando?
- Sim. Uma com jeito de... Vadia.

Submisso, Seu Edmundo balança a cabeça assertivamente e agradece. O modo como Laerte o trata não faz mal. O fato de ser uma mulher agrada – a fome, claro. Laerte sai, encantado com o couro de pelica de seu par de sapatos Cosmos cheirando a loja. Seu Edmundo ajeita os óculos e levanta-se.

Quatro lances de escada até a pessoa eram uma longa viagem. Já naquela época a respiração às vezes falhava. Era forçar um pouco os músculos e o ar resvalava em seus brônquios sem ocupar o vazio certo, no volume certo, com a determinação exata. O coração saía pela garganta. Digamos que a maior parte da vida adulta ele viveu-a assim, com dificuldades de respirar. A poluição urbana e o cigarro apenas pioraram a situação.

Abriu a porta que separa a agência do hall de entrada, onde ficam os elevadores do edifício-sede. As portas da frente estavam trancadas. Passava das 16h. O vigilante via com maus olhos as feições extenuadas de Seu Edmundo, mas não disse nada. Era mais um que se omitia. Não se preocupe, Alma, muita gente se omitiu em relação a seu pai.

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Para sujeitos como Seu Edmundo, um crachá representa mais do que uma foto com um logotipo e um nome grafado corretamente. Seu crachá informava grupo sanguíneo e RH, e lhe dava existência maior, ampliava-o até o mínimo necessário para que um indivíduo não evapore.

A pessoa que o esperava tinha espáduas e ancas insinuantes. Estava encostada no balcão. Apesar dos degraus da vida, a palpitação vai se acalmando. Seu Edmundo enxerga uma mulher de coque negro pouco acima da nuca.

Os fios de cabelo mais na superfície do penteado haviam sido dourados ao sol, como a pele, e talvez com um pouco de água oxigenada. Ele se aproxima e reconhece os ombros salpicados de sardas casta­nhas sob a blusa de seda transparente. Anita, a namorada de Seu Edmundo, quem diria. Depois de um tempo sem dar as caras, ela reaparece.

Para o homem que ama Inês, ou seja, a própria esposa que não o ama, Anita parece uma deusa. Ele pousa a mão no ombro tostado dela. Ela gira o corpo, fisgando-o com um olhar de perua autocomplacente. Os seios comprimidos pelo sutiã rendado estão para saltar. De imediato, ela age com cautela, não sentimentaliza a oportunidade, mantém a pose clássica.
- Você emagreceu, querido.
- Deve haver um motivo muito importante pra você vir aqui, Anita.
- Estava passando e resolvi perguntar por você. Fiz mal?
- Não.
- Precisamos conversar um assunto sério.
- Se for dinheiro, estou sem.
- Por favor, Ed, não fale assim.

No fundo, no fundo, Seu Edmundo queria intimidá-la. Mas para lidar com Anita é necessário mais que uma ironia inocente, uma grosseria forçada ou uma franqueza autêntica. Como ela sempre sabe aonde pretende chegar, é preciso firmeza, resolução, essas duas qualidades que a natureza não concedeu a Seu Edmundo.

- O que passou, passou, não é mesmo?
- É possível. (Ele responde com os olhos para o alto).
Anita e suas filosofias de auto-ajuda:
- Para cada exceção, querido, há sempre duas regras.
- Estou atarefado, Anita. Diz logo o que você quer.
- Conversar. Mas não aqui. Talvez sentados em algum bar, com calma. O que acha?
- Você não emenda.
- Vamos, o assunto é deli­cado.

Sob dúvida, ele exibia um pensar totalitário. Também não se tratava, como podemos crer, de dizer sim ou não. A situação exigia vocabulário armazenado e talento para inventar. Longe dele deixar transparecer sua confu­são mental naquele momento, mas a aparição de Anita prenunciava constrangimentos e remetia a culpas.

A frouxa negativa dele a fez murchar sem desistir.
- Eu te espero o tempo que for preci­so, Ed.
Seu Edmundo acende um cigarro. Anita pede um. Há uma pausa apropriada ao que o momento comporta. Está bem, está bem.
- Vou engavetar as coisas, então. Se Laerte já tiver ido embora, volto e te encontro aqui mesmo.
- Você é adorável, Ed.

Pelo modo como Anita traga o cigarro, qualquer distraído poderia confirmar sua tensão. Se ela está precisando, por que não ouvi-la? Seu Edmundo talvez não pensasse desse modo se não se considerasse culpado pelo relacionamento com ela ter começado exatamente como acabou.

Além de tudo, tem a fome, essa face carnal escravizante. A fome o fez juntar seus pertences às pressas. Relatórios, livros de controle, impressos, carimbos, documentos de caixa, recibos, a esferográfica presa ao barbante.

Pode parecer besteira para alguns, mas ele se sentia na obrigação de persignar-se todos os dias na hora de ir embora da agência. Naquele último encontro com Anita, ele agradeceu a Deus não só por mais um expediente que chegava ao final como pelo fato de Laerte e os seus comparsas já terem ido embora. Entre outras coisas, isto desobrigava Seu Edmundo de dar-lhes boa noite. Perfeito para quem costumava sair após os chefões.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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