sábado, 28 de novembro de 2015

Fernando Pessoa e a mudança social


* Por Marcos Almir Madeira


Fernando Pessoa foi o mais inventivo dos poetas - o mais pessoal. Talvez o mais excitante. Cultivou o paradoxo, não apenas com engenho, senão também com avidez, a tal ponto que parecia divertir-se sensualmente com ele. Tornou-se como poeta e homem de pensamento, como esteta renovador e filósofo inquieto, um dos talentos mais provocantes deste século; positivamente, uma organização mental que atingiu os mais altos níveis de singularidade e arrojo, para não dizer de audácia, às vezes a ferver de irreverência, incômoda para muitos, mas construtiva para todos; audácia estimulante de todas as façanhas do espírito, de todas as peripécias da inteligência de indivíduos e de grupos, à espera da mensagem diferente, nova, nervosa. A esses, principalmente a esses, foi que levou o seu aviso, - não apelos, que não estavam na sua índole, mas advertências, senão mesmo objurgatórias, a faiscarem notadamente na obra em prosa. Nesse campo da sua semeadura e da sua colheita, a visão social propriamente dita manifesta-se numa espécie de sentido ou consciência da história.

Vistos a essa luz, seus achados ou registros de interesse sociológico são tanto mais consistentes quanto mais ele os condiciona à pressão dos agentes culturais, em termos precisos de tempo e meio. Quando nos dá o traçado de uma Sociologia literária,1 é para ponderar, por outras palavras, que a poesia culta escapa a critérios de individualidade e popularidade; está vinculada ao sistema de valores da época. É evidente, aí, a convergência para os esquemas conceituais do culturalismo germânico, só podado em suas demasias pela vocação de equilíbrio de certos expoentes da sociologia francesa. Mas isto não é o que agora importa; o que avulta é mais que a visão: é a antevisão do poeta, ao escrever nos idos de 1914, quando estava no auge a exaltação do individualismo, a que opunha uma concepção nitidamente social do fato literário. O que ele via eram climas de cultura no fundo do tempo, a se constituírem em explicação final para criação literária. Uma confirmação disso está, por exemplo, na sua observação de que o Infante D. Henrique foi o "perfeito tipo de sonhador"... porque "viveu no tempo em que se podia sonhar".2

Em 1916, tratando de arte moderna, adverte a sociedade de então, baseando-se nos dados da realidade social ateniense. Para ele, corria a civilização "o risco de ficar submersa como a Grécia sob a extensão da democracia ou então de ficar como Roma... nas mãos... de grupos financeiros sem pátria, sem lar na inteligência, sem escrúpulos intelectuais"...3

Retomava, naquela altura, o conceito de que a arte é feita para o povo. Refugava largamente a tese ou o pressuposto; pressuposto que vai sendo impugnado em centros cultos do mundo de nossos dias, mesmo por estudiosos que não se alistaram entre simples conservadores e reacionários integrais.

Sobre Portugal entre o passado e o futuro,4 a visão social do escritor não chega a revelar um atitude de auto-flagelação, mas o seu pessimismo é irônico. Conclui que a crise portuguesa "provém, essencialmente, do excesso de civilização das incivilizáveis". Esta reflexão encontra desdobramento natural na conclusão de que o povo português é fundamentalmente cosmopolita ou de que "nunca um verdadeiro português foi português - porque foi sempre tudo".

É interessante assinalar que nas suas meditações sociológicas em torno da religião ou da fé, Fernando Pessoa já não é um crítico da linha pluralista, como foi ao traçar o perfil do povo português; povo que acabava sendo nada, exatamente porque foi sempre tudo.

Não. No misterioso domínio da religião, a visão social lhe apontava os rumos do ecletismo de concepção e de ação, de tal modo que se torna, entre 1916 e 1923, um ardoroso adepto do que hoje recebe o nome ecumenismo.

Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.5

Veja-se agora a conceituação de provincianismo:6 "Consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela - em segui-la, pois, mimeticamente." Fernando identifica na atitude de pasmo ou, por bem dizer, de basbaque ante o progresso, a característica mais viva do provinciano; e argumenta com o fato de que "os civilizados promovem o desenvolvimento, criam a moda, criam a modernidade; por isso não lhes atribuem importância maior. Quem não produz é que admira a produção". E é esta, lembra o poeta com agudeza, uma das explicações do socialismo. Eça de Queirós, para ele, é um flagrante exemplo de provincianismo. E acrescenta redondamente: "Foi o escritor português que mais se preocupou em ser civilizado."

Um outro ponto de afirmação doutrinária que devo destacar coincide com as idéias básicas de um emérito pensador social brasileiro: Alberto Torres. Refiro-me a idéias em torno da posição nacionalista. Torres considerava o povo brasileiro, mas notadamente seus grupos de elite, "alienados de espirito e de caráter". A crítica social de Fernando Pessoa tem outro revestimento literário, é vazada numa espécie de ironia patriótica, mas ajusta-se ao pensamento do doutrinador fluminense. "Estamos tão desnacionalizados - denuncia o líder do Orfeu - que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na realidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se."

Nas suas considerações sobre o patriotismo localista - ou melhor, sobre o regionalismo - o poeta filósofo antecipa-se a uma concepção dinâmica da cidadania e do amor à terra, concepção oposta à do patriotismo apenas contemplativo, cândido ou ufanista. A visão estreita do regionalismo, creio até que o irritava. Não terá sido por outra razão que escreveu: "Amar a nossa terra não é gostar de nosso quintal. O bom regionalismo é amá-lo por estar ele na Europa. Mas quando chego a este regionalismo sou já português e já não penso no meu quintal."8

Em assunto bem outro, recordo agora certo libelo: aquele em que poeta resume suas idéias sobre o comunismo.

Ao contrário do catolicismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema - o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. ... inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.

O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem. conquistado até hoje, de espiritualidade moral e mental - isto é de civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.9

Que me permitam assinalar uma coincidência, embora incorrendo em autocitação. Há mais ou menos quatro décadas, publiquei algumas reflexões sobre o comunismo. Foi quando me correu sustentar que o marxismo-leninismo não perfaz a rigor uma doutrina, exatamente porque a sua prédica, feita num clamor de apelo, deriva de um estado de espírito e não de um gesto ou uma opção do espírito; muito menos resulta de uma definição da inteligência trabalhada pela reflexão. É um incitamento, um frêmito, uma mensagem a instintos insatisfeitos. Não é o raciocínio político mas o protesto que se exaure em si mesmo. A bem pensar, exerce uma função parasitária, nutrindo-se de circunstâncias anômalas, erigindo em regra a própria contingência. Vale-se da miséria, alimenta-se da própria fome, compondo o paradoxo tragicômico. É um equívoco do sofrimento, uma congestão da inveja, uma corruptela do espírito de justiça, um código de vingança, ou uma vingança a um só tempo homicida e suicida. Tudo isto será o comunismo. Doutrina é outra coisa.

Ainda uma vez lhes peço: perdoem que me esteja a citar. Mas aconteceu que vendo agora o meu encontro de idéias com o Fernando de todos nós, não pude resistir à tentação de sublinhar a coincidência, para pôr em festa minha vaidadezinha tropical...

Sobre a ilusão política das grandes manifestações populares medite-se nestas palavras de realidade transparente:

Nisto de manifestações populares, o mais difícil e interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou sabe delas ingenuamente, as interpreta pelos fatos como se deram. Ora, nada se pode interpretar pelos fatos como se deram. Nada é como se dá. Temos que alterar os fatos, tais como se deram, para poder perceber o que realmente se deu. É costume dizer-se que contra fatos não há argumentos. Ora, só contra fatos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os fatos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos fatos, que pode haver lógica10

E aqui retomo, para concluir, o argumento central deste pequeno estudo: argumento de que a visão social de Fernando Pessoa resulta, predominantemente, da agudeza com que ele trabalha o fato histórico, buscando, no caso específico de Portugal, a explicação de um certo presente pela compreensão de um certo passado. Observem-se no capítulo "Idéias políticas aplicadas ao caso português", da coletânea em prosa, estas mostras do seu pensamento sociológico:

Onde quer que se coloque o início da nossa decadência - da decadência resultante do formidável esforço com que realizamos as descobertas e as conquistas -, aí se deve colocar o início da grande ruptura de equilíbrio, que se deu na vida nacional. Com a dispersão, por todo o mundo, e a morte em tantos combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, em uma sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço.

... No caso do superconservantismo, o remédio a aplicar tem de ser um transformador mental, criador de interesse e energia, e, ao mesmo tempo, uma cura para o atraso da nação. Ora, há só um gênero de transformação, aplicável a uma nação inteira, e pela qual se lhe avive o espírito e se lhe desperte interesse e vontade: é uma transformação profissional, e, como se trata de um país atrasado, e todos os países atrasados são predominantemente agrícolas, é evidente que a única transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas, é a industrialização sistemática do país.

Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos tem falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral. Trabalhemos ao menos - nós, os novos - por perturbar as almas, por desorientar os espíritos.11

No auge do paradoxo, que era o seu clima (ainda que paradoxo às vezes aparente) todos sabemos o que pretendia o poeta pensador com as suas tiradas borbulhantes e excentricidades conceituosas, quentes, buliçosas. Toda a sua ânsia era sacudir a árvore, replantar Portugal, mudá-lo, transformá-lo revolver todo o "quintal"... E assim se explica que tenha advertido maciçamente, na concisão de três palavras: "Tudo é mudança."

Aí está. Na brevidade do conceito, a atualidade do escritor. Quem lhe negaria uma perfeita integração no que tem de mais palpitante, em nossos dias, a compreensão dinâmica dos fatos e processos sociais? Basta conferir suas três palavras sociais? Basta conferir suas três palavras - Tudo é mudança - com o mundo das realidades que nos cercam e desafiam no quotidiano da vida de hoje.

E não faltaria ao excelente inquieto o aval de um poeta em prosa: Maeterlinck. Pois não estava nele a conclusão de que própria ciência é um "conjunto de verdades provisórias"?...

Palestra no Liceu Literário Português, em 28.3.86, no Rio de Janeiro.

1. Fernando Pessoa - Obras em prosa. Rio de Janeiro, GB, Companhia José Aguilar Editora, 1974, pág. 296.
2. Ob. cit., pág. 298.
3. Ob. cit., pág. 299.
4. Ob. cit., pág. 329.
5. Ob. cit., pág. 334.
6. Ob. cit., págs. 336 e 337.
7. Ob. cit., pág. 330.
8. Ob. cit., pág. 331.
9. Ob. cit., pág. 566.
10. Ob. cit., pág. 582.
11. Ob. cit., pág. 596.

(Atualidade política de três poetas, 1988).

* Escritor, advogado, professor e educador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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