Memórias de Água Fria
* Por Urariano Mota
O leitor não se assuste, que o título acima não é de memórias que entraram numa fria. Trata-se do nome do livro que um grupo de amigos, no vigor dos 60 anos, resolveu escrever sobre o bairro da sua infância e juventude. Bairrismo literal à parte, Água Fria bem merece. Bem posto na zona norte do Recife, o bairro foi berço ou abrigo de artistas, atletas, políticos, escritores e bandidos, mas nem sempre nessa ordem.
Dos mais famosos lembram-se o gênio Sivuca, o cineasta Vladimir Carvalho, o cantor Orlando Dias, o Mestre Ginu do mamulengo, o goleiro Manga, mais o Pai Adão do Xangô, o Maestro Formiga, o seu João do Caldíssimo e o herói Gregório Bezerra. Dos menos, ou melhor, nada famosos, vêm o autor destas linhas e outros marginais, alguns doutores em universidades, até reitores, que trocaram o caldo de cana com pão doce pelo uísque 12 anos.
Se o livro fosse um filme da Metro Goldwyn Mayer passando no Cine Império, o maior do bairro em 1960, logo depois do rugido fascinante do leão iria aparecer na tela em letras colossais:
“A Editora Coqueiro tem o grato prazer de oferecer “Memórias de Água Fria” - o livro que conta a história do bairro pelos seus mais apaixonados habitantes. Sexo, roubo, crimes, amor e aventura estão nesse encontro de onze grandes marginais, ex-lascados de vida, que agora pensam que estão ricos e se acham até escritores”.
Depois, com imagens na tela de mulheres com seios entrevistos, e de sombras correndo em frente à igreja de Santo Antonio, de sons de batuques e de gargalhadas moleques, gritando em falsete, “Aaaaaiiii”, o locutor com voz das cavernas narraria:
“Água Fria dos carnavais, dos roubos de cocos, de ladrões jovens que viraram doutores. Água Fria dos adolescentes queijudos flagrados em sua primeira noite na zona. Água Fria de seu João do Caldíssimo, o caldinho que recebia anúncio grátis de Paulo Gracindo via Embratel. Água Fria do terreiro de Pai Adão, o mais antigo templo de xangô do Nordeste. Água Fria das namoradas que não envelhecem nunca está de volta.
Sexta-feira 11 de novembro, no colégio Alfredo Freyre, às sete e meia da noite”.
Mas fora da tela, em suas páginas, podem ser vistos lirismo, humor, revelações, segredos inconfessáveis, declarações de amor, história do bairro e afirmação de identidades, tão dispersas hoje por tempos e lugares do Brasil. De um trecho do livro, destaco:
“O cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: “quando voltar, me traga o boneco que fala”. O cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras, que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos mais dignos de serem vividos , revividos, estão na primeira infância. Então descobri, como uma coisa que não era só de Manuel Bandeira:
‘Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante’.
Não é que a vida tenha parado depois. Não é nem mesmo que grandes e importantes fatos não tenham cruzado o nosso caminho nos anos de juventude e maduros. É a comparação, o cotejo dos primeiros anos com os vindos depois, que mostra a diferença a favor da primeira idade. E agora ouso acrescentar mais alguma coisa às linhas do maior poeta brasileiro. A consciência desses primeiros anos é que talvez seja o maior acontecimento, o saber que não poderemos mais reter aquela doçura do nunca visto antes. Ainda que seja uma consciência de compensação, com um travo, que nos faz até pensar que talvez fosse até melhor não tê-la, se em troca nos oferecessem os primeiros anos. Ainda assim, é melhor a consciência do perdido que a posse fugaz do que não podemos tomar, sorver em toda a plenitude. Isso porque é impossível guardar o frescor da infância com a experiência madura”.
Que venham mais livros de memórias dos bairros. O Brasil inteiro tem muitas Águas Frias.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
* Por Urariano Mota
O leitor não se assuste, que o título acima não é de memórias que entraram numa fria. Trata-se do nome do livro que um grupo de amigos, no vigor dos 60 anos, resolveu escrever sobre o bairro da sua infância e juventude. Bairrismo literal à parte, Água Fria bem merece. Bem posto na zona norte do Recife, o bairro foi berço ou abrigo de artistas, atletas, políticos, escritores e bandidos, mas nem sempre nessa ordem.
Dos mais famosos lembram-se o gênio Sivuca, o cineasta Vladimir Carvalho, o cantor Orlando Dias, o Mestre Ginu do mamulengo, o goleiro Manga, mais o Pai Adão do Xangô, o Maestro Formiga, o seu João do Caldíssimo e o herói Gregório Bezerra. Dos menos, ou melhor, nada famosos, vêm o autor destas linhas e outros marginais, alguns doutores em universidades, até reitores, que trocaram o caldo de cana com pão doce pelo uísque 12 anos.
Se o livro fosse um filme da Metro Goldwyn Mayer passando no Cine Império, o maior do bairro em 1960, logo depois do rugido fascinante do leão iria aparecer na tela em letras colossais:
“A Editora Coqueiro tem o grato prazer de oferecer “Memórias de Água Fria” - o livro que conta a história do bairro pelos seus mais apaixonados habitantes. Sexo, roubo, crimes, amor e aventura estão nesse encontro de onze grandes marginais, ex-lascados de vida, que agora pensam que estão ricos e se acham até escritores”.
Depois, com imagens na tela de mulheres com seios entrevistos, e de sombras correndo em frente à igreja de Santo Antonio, de sons de batuques e de gargalhadas moleques, gritando em falsete, “Aaaaaiiii”, o locutor com voz das cavernas narraria:
“Água Fria dos carnavais, dos roubos de cocos, de ladrões jovens que viraram doutores. Água Fria dos adolescentes queijudos flagrados em sua primeira noite na zona. Água Fria de seu João do Caldíssimo, o caldinho que recebia anúncio grátis de Paulo Gracindo via Embratel. Água Fria do terreiro de Pai Adão, o mais antigo templo de xangô do Nordeste. Água Fria das namoradas que não envelhecem nunca está de volta.
Sexta-feira 11 de novembro, no colégio Alfredo Freyre, às sete e meia da noite”.
Mas fora da tela, em suas páginas, podem ser vistos lirismo, humor, revelações, segredos inconfessáveis, declarações de amor, história do bairro e afirmação de identidades, tão dispersas hoje por tempos e lugares do Brasil. De um trecho do livro, destaco:
“O cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: “quando voltar, me traga o boneco que fala”. O cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras, que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos mais dignos de serem vividos , revividos, estão na primeira infância. Então descobri, como uma coisa que não era só de Manuel Bandeira:
‘Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante’.
Não é que a vida tenha parado depois. Não é nem mesmo que grandes e importantes fatos não tenham cruzado o nosso caminho nos anos de juventude e maduros. É a comparação, o cotejo dos primeiros anos com os vindos depois, que mostra a diferença a favor da primeira idade. E agora ouso acrescentar mais alguma coisa às linhas do maior poeta brasileiro. A consciência desses primeiros anos é que talvez seja o maior acontecimento, o saber que não poderemos mais reter aquela doçura do nunca visto antes. Ainda que seja uma consciência de compensação, com um travo, que nos faz até pensar que talvez fosse até melhor não tê-la, se em troca nos oferecessem os primeiros anos. Ainda assim, é melhor a consciência do perdido que a posse fugaz do que não podemos tomar, sorver em toda a plenitude. Isso porque é impossível guardar o frescor da infância com a experiência madura”.
Que venham mais livros de memórias dos bairros. O Brasil inteiro tem muitas Águas Frias.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário