O vigia do mar
* Por Nei Duclós
A realidade do pescador é a brusca mudança, o rochedo que aflora, o sumidouro, o roçar de um monstro, a mistura do vento, o peixe maior do que os braços. Ele vive diante da oportunidade perdida, da história afundada no tempo, na curva da onda batizada de Iemanjá, na tentação sonora em forma de sereia. O pescador perde a forma para adaptar-se às imposições mutantes da paisagem. Sua percepção sofre com esse penoso exercício e por isso não é convincente para quem vive fora do seu mundo. Mas ele sabe o quanto pode se enganar, principalmente quando fica de olho na água para vislumbrar a presa. Sua salvação é contar com o apoio do mais preparado dos seus pares, aquele que vive no alto do morro, só e desperto. É o vigia do mar. Ele vê cardume no escuro e dá o alarme quando todos estão dormindo. Visitei um velho vigia um dia desses, no Muquém, bairro ao sopé de um morro e que fica no caminho para a Lagoa, aqui em Florianópolis.
O homem cultiva orquídeas e me contou várias histórias do tempo em que detectava tainha para os pescadores das praias de ingleses, Moçambique, Santinho. Tinha esperança que eu levasse alguma de suas raridades, mas a ilha é prudente na circulação da moeda e todos vivem no aperto, aguardando a chegada de turistas. Ele nos mostrou sua coleção, que vai florir no verão e que chega até o pé do morro. Sua chácara começa bem rente à rua, num velho engenho onde vive. Lá impera o grande forno e o fogão de pedra, alto. Sua esposa varre o chão com vassoura de folhas catadas no quintal e faz café de chaleira amassada, com gosto e aroma fortes. Os olhinhos apertados do velho me fuzilavam enquanto desfiava suas histórias. Fala rápido demais e não dá bola se o interlocutor não tem a mínima idéia de várias palavras e expressões que usa para descrever seu ofício.
Garante que vê cardume de tainha em noite sem lua e não é o barulho ou a forma diferente da superfície do mar que dá a pista. É algo muito mais profundo, que só o vigia sabe, e que não conta para ninguém, pois esse é o segredo mais bem guardado desses mestres tratados com reverência pelos outros pescadores. Uma colônia de pesca depende da habilidade do seu vigia e se ele for bom é possível colher toneladas num só arrastão. A palavra mais usada pelo velho é peixe. Ele diz peixe para tudo, usando-a como costura de causos sem fim, quando costumava surpreender os incrédulos que viviam dizendo que ele já estava ultrapassado, não enxergava mais nada. Mas o vigia não enxerga, ele simplesmente sabe.
O velho ri ao lembrar que um desses incrédulos estava falando asneira enquanto o peixe ameaçava roçar a perna dele. O cardume se alvoroçava perto do rochedo e a assombração da sua presença era notada pelo vigia bem na beira. É a cor do mar que muda? pergunto, e ele ri. O mar fica marrom, vermelho, borbulhante, dizem os leigos. O vigia, entretanto, vê o cardume de tainha quando o mar está calmo e tudo parece normal. Por isso há respeito na voz dos que se referem ao mestre. Fomos mais tarde procurar outros vigias e abordamos um grupo sentado em frente a um barraco que guardava barcos. Pergunto mas ninguém me responde. Invoco então o nome próprio da pessoa procurada e digo a senha: pronuncio o nome do mestre, que me deu a dica. Todos levantam o olhar e as caras mudam.
Imediatamente apontam com todos os dedos o vigia deles, o que está atualmente na ativa, e que fica de olho no mar ao lado de outro companheiro . São dois de plantão. O mestre era solitário. Pegava uma garrafa pequena de água e ia para o seu posto. O senhor era um bom pescador? pergunto novamente. Nunca pesquei, diz ele, mas sempre comi peixe. Sou da lavoura, planto para comer. Ou pelo menos plantava. Hoje está tudo proibido, não se pode nem colher um pé de mandioca. Esses dias um menino foi vender mandioca num carrinho de mão e um fiscal do Ibama disse que era proibido. Antigamente a gente plantava feijão, comia e guardava. Mas não durava três meses. Antes de estragar, a gente fervia e dava para os porcos. Hoje você compra um quilo de feijão no armazém e o grão pode durar anos. Está tudo envenenado. Precisamos pagar pelo alimento e ainda comemos veneno.
Em cima da porta que dá para o orquidário, há uma tainha aberta ao meio, secando ao sol. Ele recebe presentes dos pescadores ainda agradecidos. Às vezes chega um repórter e fotografa suas orquídeas. Ou um estudioso alemão que nunca viu coisa igual e sai feliz com as novas espécies. Ele é famoso, mas continua simples, jamais humilde. O velho vigia é o especialista em sua arte, o olho enfeitiçado que enxerga assombração. Faça perguntas e veja como ele ri. Um mestre não aceita perguntas, ele sabe o que falar. Por isso fala sem parar e eu escuto por horas. Saio então em direção ao mar. As gaivotas ficam de sentinela. O mar está para peixe? Quem sabe é o vigia e seus aprendizes. É possível aprender o ofício? O velho ri. Essas pessoas fazem cada pergunta... Quer mais um café? Vai levar uma orquídea?
* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
* Por Nei Duclós
A realidade do pescador é a brusca mudança, o rochedo que aflora, o sumidouro, o roçar de um monstro, a mistura do vento, o peixe maior do que os braços. Ele vive diante da oportunidade perdida, da história afundada no tempo, na curva da onda batizada de Iemanjá, na tentação sonora em forma de sereia. O pescador perde a forma para adaptar-se às imposições mutantes da paisagem. Sua percepção sofre com esse penoso exercício e por isso não é convincente para quem vive fora do seu mundo. Mas ele sabe o quanto pode se enganar, principalmente quando fica de olho na água para vislumbrar a presa. Sua salvação é contar com o apoio do mais preparado dos seus pares, aquele que vive no alto do morro, só e desperto. É o vigia do mar. Ele vê cardume no escuro e dá o alarme quando todos estão dormindo. Visitei um velho vigia um dia desses, no Muquém, bairro ao sopé de um morro e que fica no caminho para a Lagoa, aqui em Florianópolis.
O homem cultiva orquídeas e me contou várias histórias do tempo em que detectava tainha para os pescadores das praias de ingleses, Moçambique, Santinho. Tinha esperança que eu levasse alguma de suas raridades, mas a ilha é prudente na circulação da moeda e todos vivem no aperto, aguardando a chegada de turistas. Ele nos mostrou sua coleção, que vai florir no verão e que chega até o pé do morro. Sua chácara começa bem rente à rua, num velho engenho onde vive. Lá impera o grande forno e o fogão de pedra, alto. Sua esposa varre o chão com vassoura de folhas catadas no quintal e faz café de chaleira amassada, com gosto e aroma fortes. Os olhinhos apertados do velho me fuzilavam enquanto desfiava suas histórias. Fala rápido demais e não dá bola se o interlocutor não tem a mínima idéia de várias palavras e expressões que usa para descrever seu ofício.
Garante que vê cardume de tainha em noite sem lua e não é o barulho ou a forma diferente da superfície do mar que dá a pista. É algo muito mais profundo, que só o vigia sabe, e que não conta para ninguém, pois esse é o segredo mais bem guardado desses mestres tratados com reverência pelos outros pescadores. Uma colônia de pesca depende da habilidade do seu vigia e se ele for bom é possível colher toneladas num só arrastão. A palavra mais usada pelo velho é peixe. Ele diz peixe para tudo, usando-a como costura de causos sem fim, quando costumava surpreender os incrédulos que viviam dizendo que ele já estava ultrapassado, não enxergava mais nada. Mas o vigia não enxerga, ele simplesmente sabe.
O velho ri ao lembrar que um desses incrédulos estava falando asneira enquanto o peixe ameaçava roçar a perna dele. O cardume se alvoroçava perto do rochedo e a assombração da sua presença era notada pelo vigia bem na beira. É a cor do mar que muda? pergunto, e ele ri. O mar fica marrom, vermelho, borbulhante, dizem os leigos. O vigia, entretanto, vê o cardume de tainha quando o mar está calmo e tudo parece normal. Por isso há respeito na voz dos que se referem ao mestre. Fomos mais tarde procurar outros vigias e abordamos um grupo sentado em frente a um barraco que guardava barcos. Pergunto mas ninguém me responde. Invoco então o nome próprio da pessoa procurada e digo a senha: pronuncio o nome do mestre, que me deu a dica. Todos levantam o olhar e as caras mudam.
Imediatamente apontam com todos os dedos o vigia deles, o que está atualmente na ativa, e que fica de olho no mar ao lado de outro companheiro . São dois de plantão. O mestre era solitário. Pegava uma garrafa pequena de água e ia para o seu posto. O senhor era um bom pescador? pergunto novamente. Nunca pesquei, diz ele, mas sempre comi peixe. Sou da lavoura, planto para comer. Ou pelo menos plantava. Hoje está tudo proibido, não se pode nem colher um pé de mandioca. Esses dias um menino foi vender mandioca num carrinho de mão e um fiscal do Ibama disse que era proibido. Antigamente a gente plantava feijão, comia e guardava. Mas não durava três meses. Antes de estragar, a gente fervia e dava para os porcos. Hoje você compra um quilo de feijão no armazém e o grão pode durar anos. Está tudo envenenado. Precisamos pagar pelo alimento e ainda comemos veneno.
Em cima da porta que dá para o orquidário, há uma tainha aberta ao meio, secando ao sol. Ele recebe presentes dos pescadores ainda agradecidos. Às vezes chega um repórter e fotografa suas orquídeas. Ou um estudioso alemão que nunca viu coisa igual e sai feliz com as novas espécies. Ele é famoso, mas continua simples, jamais humilde. O velho vigia é o especialista em sua arte, o olho enfeitiçado que enxerga assombração. Faça perguntas e veja como ele ri. Um mestre não aceita perguntas, ele sabe o que falar. Por isso fala sem parar e eu escuto por horas. Saio então em direção ao mar. As gaivotas ficam de sentinela. O mar está para peixe? Quem sabe é o vigia e seus aprendizes. É possível aprender o ofício? O velho ri. Essas pessoas fazem cada pergunta... Quer mais um café? Vai levar uma orquídea?
* Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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